sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Entrevista de Carlos Castañeda para a Revista Psychology Today, 1972.




Tradução: Miguel Duclós

Esta entrevista saiu logo depois da publicação do terceiro livro do autor, Viagem a Ixtlan. Ele estava procurando desvencilhar-se da alcunha de guru das drogas psicodélicas que havia recebido com a publicação dos primeiros livros. Este entrevistador, Sam Keen, talvez tenha sido o mais competente na formulação de perguntas. Sua formação em filosofia e teologia em Harvard e Princeton o fazem buscar paralelos entre os ensinamentos e as tradições ocidentais e orientais já conhecidas. Aparece aqui até uma curiosa afirmação de Don Juan a respeito do filósofo austríaco Wittgenstein. Leia a seguir.

Sam Keen:Como eu acompanhei Don Juan através de seus três livros, suspeitei, às vezes, que ele era uma criação de Carlos Castaneda. Ele é quase bom demais para ser verdade. Um índio velho e sábio cujo conhecimento da natureza humana é superior ao de quase todo mundo.

Carlos Castaneda: A idéia de que eu forjei uma pessoa como Don Juan não é convincente. Ele dificilmente seria o tipo de figura que minha tradição intelectual européia levaria a conceber. A verdade é sempre algo muito estranho. Eu não estava sequer preparado para fazer as mudanças na minha vida que a minha associação com Don Juan requisitou.

Sam Keen:Como e quando você encontrou Don Juan e tornou-se seu aprendiz?

Carlos Castaneda: Eu estava terminando meu trabalho de conclusão de curso na UCLA e planejando ir para a graduação em antropologia. Estava interessado em me tornar professor e pensei que poderia começar de maneira apropriada publicando um ensaio curto sobre plantas medicinais. Não podia ter me importado menos por encontrar um esquisitão como Don Juan. Eu estava em uma estação de ônibus no Arizona com um amigo do tempo do colégio. Ele apontou um velho índio yaqui e disse que ele tinha conhecimento sobre peiote e plantas medicinais. Fiz a melhor cara que pude e me apresentei a Don Juan dizendo: . Entendo que você sabe muito acerca do peiote. Eu sou um especialista em peiote (Eu havia lido o livro de Weston La Barre's, O ritual do peiote) e pode ser gratificante para você almoçar e passar um tempo comigo.. Bem, ele apenas me lançou um olhar e minha audácia dissolveu-se.

Fiquei completamente tímido e paralizado. Eu normalmente era muito vigoroso e falante, então foi um negócio sério ser silenciado com um olhar. Depois disso, comecei a visitá-lo e cerca de um ano depois ele disse-me que gostaria de me repassar o conhecimento da feitiçaria que havia obtido com seu mestre.

Sam Keen:Então Don Juan não é um fenômeno isolado, mas faz parte de um grupo de feiticeiros que compartilham um conhecimento secreto?

Carlos Castaneda: Certamente. Conheço três feiticeiros e sete aprendizes e existem muitos mais. Se você pesquisar a história da conquista espanhola no México, encontrará que os inquisidores católicos tentaram acabar com a feitiçaria porque a consideraram como uma coisa do demônio. Ela tem estado por aí há muitos milhares de anos. A maioria das técnicas que Don Juan me ensinou é muito antiga.

Sam Keen: Algumas das técnicas que os feiticeiros usam é amplamente usada também por outros grupos secretos. As pessoas às vezes usam os sonhos para encontrar objetos perdidos, e vão para jornadas fora-do-corpo durante seu sono. Mas quando você diz como Don Juan e seu amigo Don Genaro fizeram o carro desaparecer durante a plena luz do dia, eu poderia apenas coçar a cabeça. Eu sei que um hipnotista pode criar a ilusão de presença ou ausência de um objeto. Você acredita que foi hipnotizado?

Carlos Castaneda: Talvez, alguma coisa deste tipo. Mas temos que começar por perceber, como diz Don Juan, que existe muito mais no universo do que normalmente confessamos conhecer. Nossas expectativas usuais acerca da realidade são criadas por um consenso social. Nos ensinam como ver e perceber o mundo. A truque da socialização consiste em nos convencer que as descrições que estamos de acordo definem os limites do mundo real. O que chamamos de realidade é apenas um modo de ver o mundo, um modo que é sustentando pelo consenso social.

Sam Keen: Então um feiticeiro, como um hipnólogo, cria um mundo alternativo construindo diferentes expectativas e fornecendo pistas premeditadas para produzir um consenso social.

Carlos Castaneda: Exatamente. Eu comecei a entender feitiçaria nos termos da idéia de interpretação [glosses] de Talcott Parsons. Uma interpretação [gloss] é um sistema completo de percepção e linguagem. Por exemplo, esta sala e é uma interpretação. Nós reunimos juntos uma série de percepções isoladas: chão, teto, janela, luzes, tapete, etc para compor uma totalidade. Mas nós temos que ser ensinados a dispor o mundo junto desta forma. Uma criança experimenta o mundo com poucos pré-conceitos até que é ensinada a vê-lo de uma forma que corresponde à descrição que todos compartilham. O sistema de interpretações parece um pouco com caminhar. Nós temos que aprender a caminhar, mas uma vez que aprendemos ficamos sujeitos à sintaxe da linguagem e ao modo de percepção que ela contém.

Sam Keen:Então a feitiçaria, assim como a arte, ensina um novo sistema de anotações. Quando, por exemplo, Van Gogh rompe com a tradição artística e pinta. O Céu Estrelado [The Starry Night], ele estava efetivamente dizendo: aqui está uma nova maneira de ver as coisas. As estrelas estão vivas e rodam em volta de seus campos energéticos.

Carlos Castaneda: De uma certa forma. Mas existe uma diferença. Um artista normalmente apenas rearranja as velhas anotações que são apropriadas para seu grupo.

Sam Keen: Don Juan estava lhe dessocializando ou ressocializando? Ele estava lhe ensinando um novo sistema de significados ou apenas um método para esvaziar o antigo sistema para que assim você pudesse ver o mundo como uma criança fascinada?

Carlos Castaneda: Don Juan e eu discordamos quanto a isto. Eu digo que ele está me reinterpretando [reglossing]. Ensinando-me feitiçaria me deu um novo conjunto de interpretações, uma nova linguagem e uma nova maneira de ver o mundo. Uma vez eu li um pouco da filosofia da linguagem de Ludwig Wittgenstein e ele riu e disse. Seu amigo Wittgenstein amarrou o nó com muita força em torno de próprio pescoço, assim ele não pode ir muito longe...

Sam Keen: Wittgenstein é um dos poucos filósofos que poderia ter entendido Don Juan. Sua noção de que existem muitos tipos diferentes de jogos de linguagem, ciência, política, poesia, religião, metafísica, cada um com sua própria sintaxe e regras . poderia ter permitido a ele entender a feitiçaria como um sistema alternativo de percepção e entendimento.

Carlos Castaneda: Mas Don Juan pensa que o que ele chama de ver é apreender o mundo sem nenhuma interpretação. Este é o fim almejado pela feitiçaria. Para quebrar a certeza do mundo que sempre lhe foi ensinado, você deve aprender uma nova descrição do mundo da feitiçaria e então manter a velha e a nova juntas. Então você percebe que nenhuma das duas é final. No momento que você desliza entre as descrições; você para o mundo e vê. Você é deixado com o assombro, o verdadeiro assombro de ver o mundo sem nenhuma interpretação. 

Sam Keen:Você pensa que é possível ultrapassar as interpretações usando drogas psicodélicas?

Carlos Castaneda: Eu penso que não. Está é minha briga com gente como Timothy Leary. Eu penso que ele estava improvisando dentro da sociedade européia e rearrumando meramente velhos sistemas de interpretação. Eu nunca tomei LSD, mas o que entendi dos ensinamentos de Don Juan é que os psicotrópicos são usados para interromper o fluxo das interpretações ordinárias, para aumentar as contradições dentro das interpretações e para romper as certezas. Mas somente as drogas não possibilitam você parar o mundo. Por isso que Don Juan teve de me ensinar feitiçaria.

Sam Keen:Existe uma realidade normal que nós, ocidentais, pensamos que é o único mundo, e existe também a realidade a parte do feiticeiro. Quais as diferenças essenciais entre elas?

Carlos Castaneda: Na sociedade européia o mundo é construído em grande parte pelo que os olhos informam à mente. Na feitiçaria o corpo todo é usado como percipiente. Como europeus vemos o mundo ao redor de nós e falamos sobre ele. Nós estamos aqui e o mundo está lá. Os nossos olhos alimentam a razão e não temos conhecimento direto das coisas. De acordo com a feitiçaria esta sobrecarga dos olhos é desnecessária.
Nós percebemos com o corpo total.


Sam Keen:Ocidentais partem do pressuposto que sujeito e objeto são separados. Nós existimos a parte do mundo e temos de cruzar o vácuo para chegar até ele. Para Don Juan e a tradição dos feiticeiros, o corpo já está no mundo. Nós estamos unidos ao mundo, e não alienados dele.

Carlos Castaneda: Isso mesmo. A feitiçaria tem uma teoria diferente de personificação. O problema da feitiçaria é o de harmonizar e arrumar seu corpo para ser um bom receptor. Os europeus lidam com seus corpos como se eles fossem um objeto. Nós os enchemos de álcool, comida ruim e inquietações. Se alguma coisa está errada nós pensamos que germes de fora invadiram o corpo e então importamos algum medicamento para curá-lo. A doença não é parte de nós. Don Juan não acreditava nisso. Para ele a doença é a desarmonia entre um homem e seu mundo. O corpo é consciente e deve ser tratado impecavelmente. 

Sam Keen:Isto parece similar à idéia de Norman O. Brown's onde as crianças, esquizofrênicos e aqueles com loucura divina da consciência dionisíaca estão cientes das coisas e das outras pessoas como extensões de seu corpo. Don Juan sugere algo do tipo quando diz que os homens de conhecimento têm fibras de luz que conectam seu plexo solar ao mundo.

Carlos Castaneda: Minha conversa com o coiote é um bom exemplo das diferentes teorias de personificação. Quando ele chegou para mim eu disse: .Olá, pequeno coiote. Como você está?. E ele respondeu de volta: Estou bem. E você? Aqui eu não escutei as palavras da forma normal.
Mas meu corpo sabia que o coiote estava dizendo alguma coisa e eu traduzi isto em um diálogo. Como um intelectual, minha relação com o diálogo é tão profunda que meu corpo automaticamente transpôs para palavras o sentimento que o animal estava comunicando a mim. Nós sempre vemos o desconhecido nos termos do conhecido.


Sam Keen:Quando você estava no modo mágico de consciência onde os coiotes falam e tudo é adequado e entendido parece que o mundo todo está vivo e o ser humano está em comunicações que incluem animais e plantas. Se abandonarmos nossas concepções arrogantes de que somos a única forma de vida que conhece e comunica talvez conseguíssemos perceber toda a sorte de coisas se comunicando conosco. John Lilly falava com os golfinhos. Talvez nos sentíssemos menos alienados se pudéssemos acreditar que não somos a única forma inteligente de vida.

Carlos Castaneda: Nós podemos nos tornar capazes de falar com qualquer animal. Para Don Juan e os outros feiticeiros não havia nada de estranho na minha conversa com o coiote. Na verdade eles disseram que eu deveria ter pegado um animal mais confiável para amigo.Coiotes são trapaceiros e não pode se confiar neles.

Sam Keen:Quais animais são os melhores para serem amigos?

Carlos Castaneda: Cobras são amigos estupendos.

Sam Keen:Uma vez conversei com uma cobra. Uma noite sonhei que havia uma cobra no sótão da casa onde eu vivia quando era criança. Peguei um pau e tentei matá-la. De manhã falei sobre o sonho a um amigo e ela me disse que não era uma coisa boa matar cobras, mesmo se elas estivessem no sótão em um sonho. Ela me sugeriu que na próxima vez que aparecesse uma cobra em sonho eu deveria alimentá-la ou fazer alguma coisa para atrair sua amizade. Cerca de uma hora depois eu estava dirigindo meu patinete motorizado numa estrada pouco usada e lá, esperando por mim, estava uma cobra de quatro pés, estirada no seu banho de sol. Eu a contornei e ela não se mexeu Depois de nos olharmos um nos outros por um tempo eu pensei que deveria fazer algum gesto para mostrar que estava arrependido de ter matado seu irmão em meu sonho. Eu cheguei perto e toquei sua cauda. Ela se enrolou mostrando que eu havia invadido sua intimidade. Então eu voltei e fiquei apenas olhando. Cinco minutos depois lá se foi ela atrás dos arbustos.

Carlos Castaneda: Você não a espetou?

Sam Keen:Não.

Carlos Castaneda: Era uma amiga muito boa. Um homem pode aprender a chamar as serpentes. Mas você precisa estar em excelente forma, calmo, controlado, com um humor amigável, sem nenhuma dúvida ou assuntos pendentes. 

Sam Keen:A cobra me ensinou que eu sempre tinha pensamentos paranóicos em relação à natureza. Eu considerava animais e cobras perigosos. Após meu encontro jamais mataria outra cobra e começou a ser mais plausível para mim que nós possamos ter uma espécie de conexão viva. Nosso ecossistema pode muito bem incluir comunicações com outras formas de vida.

Carlos Castaneda: Don Juan tinha uma teoria muito interessante acerca disso. As plantas, assim como os animais, sempre afetam você. Ele dizia que se você não pedisse desculpas para as plantas por colhê-las você provavelmente ficaria doente ou sofreria um acidente. 

Sam Keen:Os índios americanos tem crenças similares sobre os animais que eles matam. Se você não agradece o animal por dar a vida para que você possa viver, seu espírito pode lhe causar problemas.

Carlos Castaneda: Nós temos uma associação com toda forma de vida. Alguma coisa se altera toda vez que machucamos a vida vegetal ou animal. Nós tiramos a vida para sobreviver mas devemos querer abrir mão de nossa própria vida sem ressentimentos quando chegar nossa vez. Nós somos tão importantes e nos levamos tão a sério que esquecemos que o mundo é um grande mistério que pode nos ensinar se escutarmos.

Sam Keen:Talvez as drogas psicodélicas momentaneamente limpem o ego isolado e permitam uma fusão mítica com a natureza. A maior parte das culturas que conservam um senso de união entre o homem e a natureza também fez uso cerimonial das drogas psicodélicas. Você estava usando peiote quando falou com o coiote?

Carlos Castaneda: Não, de maneira alguma.

Sam Keen:Esta experiência foi mais intensa das que teve quando Don Juan lhe ministrou plantas psicotrópicas?

Carlos Castaneda: Muito mais intensa. Todas as vezes que eu tomei plantas psicotrópicas eu sabia que havia ingerido algo e sempre podia questionar-me acerca da validade das minhas experiências. Mas quando o coiote falou comigo eu não tinha desculpas. Não podia explicar isso. Eu realmente parei o mundo e, saí completamente do meu sistema de interpretações europeu.

Sam Keen:Você acredita que Don Juan vive neste estado de atenção a maior parte do tempo?

Carlos Castaneda: Sim, ele vive num tempo mágico e ocasionalmente volta para o tempo normal. Eu vivo no tempo normal e ocasionalmente entro no tempo mágico.

Sam Keen:Qualquer um que tenha viajado tão longe além do desgastado consenso deve ser alguém muito solitário.

Carlos Castaneda: Penso que sim. Don Juan vive num mundo impressionante e deixou as pessoas rotineiras bem longe. Uma vez eu estava junto com Don Juan e seu amigo Don Genaro e vi a solidão que eles dividiam e sua tristeza em deixar para trás os enfeites e pontos de referência da sociedade normal. Penso que Don Juan transformou sua solidão em arte. Ele contém e controla seu poder, mistério e solidão e os transforma em arte. Sua arte é o caminho metafórico em que ele vive. É por causa disso que seus ensinamentos tem tanta carga dramática e unidade. Ele deliberadamente constrói sua arte e sua maneira de ensinar. 

Sam Keen:Por exemplo, quando Don Juan levou-o às montanhas para caçar animais estava conscientemente encenando uma alegoria?

Carlos Castaneda: Sim. Ele não estava interessado em caçar por esporte ou por comida. Há 10 anos que o conheço, e o vi matar apenas quatro animais, e apenas nas vezes em que ele viu que suas mortes eram um presente para ele, assim como sua própria morte um dia será um presente para alguma coisa. Uma vez apanhamos um coelho numa armadilha, ficamos imóveis e Don Juan achou que eu devia matá-lo, pois seu tempo havia acabado. Fiquei desesperado porque eu tinha a sensação de que eu mesmo era o coelho. Eu tentei libertá-lo mas não conseguia abrir a armadilha. Então eu pisei na armadilha e quebrei acidentalmente o pescoço do coelho. Don Juan estava tentando me ensinar a assumir a responsabilidade por estar neste mundo maravilhoso. Ele inclinou-se e sussurrou no meu ouvido: .Eu lhe disse que este coelho não tinha mais tempo para vagar por este lindo deserto.. Ele conscientemente construiu a metáfora para me ensinar sobre os caminhos de um guerreiro. Um guerreiro é alguém que caça e acumula poder pessoal. Para fazer isto ele deve desenvolver a paciência e se mover deliberadamente sobre o mundo. Don Juan usou a situação dramática da caçada para me ensinar porque estava se dirigindo diretamente ao meu corpo. 

Sam Keen:Em seu livro mais recente, Viagem a Ixtlan, você revê a impressão dada nos primeiros livros de que o uso de plantas psicotrópicas era o método principal usado por Don Juan no intuito de ensiná-lo sobre a feitiçaria. Como você vê agora o lugar dos psicotrópicos em seus ensinamentos?

Carlos Castaneda: Don Juan usou plantas psicotrópicas no período intermediário do meu aprendizado porque eu era muito estúpido, sofisticado e arrogante. Eu me agarrava à minha descrição do mundo como se ela fosse a única verdade. Os psicotrópicos criaram um vácuo no meu sistema de interpretações. Eles destruíram minha certeza dogmática. Mas eu paguei um enorme preço. Quando a cola que segurava meu mundo unido foi dissolvida, meu corpo estava fraco e eu demorei meses para me recuperar. Eu fiquei ansioso e funcionava a um nível muito baixo. 

Sam Keen:Don Juan usa drogas psicotrópicas regularmente para parar o mundo?

Carlos Castaneda: Não. Ele pode agora mesmo pará-lo com a sua vontade. Ele me disse que para mim a tentativa de ver sem a ajuda das plantas seria inútil.
Mas se eu me comportasse como um guerreiro e assumisse a responsabilidade não precisaria delas; elas apenas enfraqueceriam meu corpo.


Sam Keen:Isso pode soar um pouco chocante para vários admiradores seus. Você é uma espécie de santo patrono da revolução psicodélica.

Carlos Castaneda: Eu tenho seguidores e eles têm idéias estranhas a respeito de mim. Eu estava andando para dar uma palestra no Califórnia State, em Long Beach, outro dia e um rapaz que me conhecia me apontou para uma garota e disse Ei, esse é o Castaneda.. Ela não acreditou nele porque tinha a idéia de que eu deveria parecer muito sobrenatural. Um amigo estava reunindo algumas das histórias que circulavam sobre mim. O consenso era que eu havia feito uma façanha mística.

Sam Keen:Façanha mística?

Carlos Castaneda: Sim, que eu andava de pés descalços como Jesus e não tinha calos. As pessoas acham que devo estar doidão a maior parte do tempo. Eu também cometi suicídio e morri em vários lugares diferentes. Um colega de departamento quase fez um escândalo quando eu comecei a falar sobre fenomenologia e sociedade e explorar o conceito de percepção e socialização. Eles queriam que eu falasse pausadamente, os deixasse altos e fizesse suas cabeças. Mas para mim o entendimento é importante.

Sam Keen:Os rumores voam no vácuo de informações. Sabemos alguma coisa de Don Juan e muito pouco de Castaneda.

Carlos Castaneda: Isto é uma parte proposital da vida do guerreiro. Para escapulir dentro e fora de diferentes mundos você deve permanecer discreto. Quanto mais você ser conhecido e identificado, mais sua liberdade vai ser reduzida. Quando as pessoas tiverem idéias definitivas sobre quem é você e como você vai agir, você não poderá mais se mexer. Uma das primeiras coisas que Don Juan me ensinou foi que eu tinha que apagar minha história pessoal. Se aos poucos você criar uma névoa em torno de si então você não vai ser tomado como garantia e você tem mais espaço para se mexer. É por causa disso que eu impeço gravações de áudio e fotografias quando dou palestras.

Sam Keen:Talvez possamos ser pessoais sem sermos históricos. Você agora minimizou a importância da experiência psicodélica em relação ao seu aprendizado. E você não parece sair por aí fazendo o tipo de truques disponíveis no estoque dos feiticeiros. Que elementos dos ensinamentos de Don Juan são importantes para você? Você foi mudado por eles?

Carlos Castaneda: Para mim as idéias de ser um guerreiro e um homem de conhecimento, com a esperança de eventualmente parar o mundo e ver, têm sido as mais adequadas. Elas tem me dado paz e confiança na minha capacidade de controlar minha vida. Na época que encontrei Don Juan eu tinha muito pouco poder pessoal. Minha vida havia sido muito errática. Eu percorri um longo caminho desde o local do meu nascimento no Brasil. Exteriormente eu era agressivo e arrogante, mas interiormente era indeciso e incerto acerca de mim. Estava sempre forjando desculpas para mim mesmo. Don Juan uma vez me acusou de ser uma criança profissional porque eu estava cheio de auto-piedade. Eu me sentia como uma folha ao vento. Como com a maioria dos intelectuais, minhas costas estavam contra o muro. Eu não tinha lugar para ir. Eu não podia perceber nenhuma forma de vida que realmente me excitasse. Eu pensei que tudo o que poderia fazer era uma acomodação amadurecida para uma vida de tédio ou encontrar formas mais complexas de entretenimento como usar drogas psicodélicas, maconha e ter aventuras sexuais. Tudo isso era aumentado pelo meu hábito de ser introspectivo. Eu estava sempre olhando para dentro de mim e falando comigo mesmo. O diálogo interno raramente parava.
Don Juan abriu meus olhos para o exterior e ensinou-me a acumular poder pessoal.
Não creio que haja outro pode de vida para alguém que queira estar cheio de energia. 


Sam Keen:Parece que ele fisgou você com o velho truque dos filósofos de segurar a morte diante dos seus olhos. Eu estava impressionado em perceber quão clássica a abordagem de Don Juan é. Eu ouvia ecos da idéia de Platão de que um filósofo deve estudar a morte antes que possa ganhar acesso ao mundo real e da definição de Martin Heidegger de um homem como um ser-para-a-morte.

Carlos Castaneda: Sim, mas a abordagem de Don Juan tem um aspecto diferente, que vem da tradição da feitiçaria, que é o de considerar a morte como uma presença física que pode ser sentida e vista. Uma das interpretações da feitiçaria é: a morte está à sua esquerda. A morte é um juiz imparcial que lhe dirá a verdade e lhe dará conselhos precisos. Afinal, a morte não está com pressa. Ela lhe pegará em um dia, uma semana, ou 50 anos. Não faz diferença para ela. No momento que você pensa que eventualmente deve morrer está reduzindo o lado direito.
Eu acho que ainda não tornei esta idéia vívida o bastante. A interpretação .A morte está a sua esquerda. não é uma questão intelectual na feitiçaria, é percepção. Quando seu corpo está adequadamente sintonizado com o mundo e você vira os olhos para a esquerda, você pode testemunhar um evento extraordinário, a presença sombria da morte.


Sam Keen:Na tradição existencial, as discussões sobre responsabilidade geralmente se seguem às discussões sobre a morte.

Carlos Castaneda: Então Don Juan é um bom existencialista. Se não há como saber se eu tenho apenas mais minuto de vida, devo agir como se cada instante fosse o último. Cada ato é a última batalha do guerreiro. Então tudo deve ser feito impecavelmente. Nada pode ser deixado pendente. Esta idéia foi muito libertadora para mim. Eu estou aqui falando com você e talvez nunca volte para Los Angeles. Mas não importa porque eu cuidei de tudo antes de vir para cá.

Sam Keen:Este caminho de morte e determinação é distante da utopia psicodélica na qual a percepção do final do tempo destrói a qualidade trágica da escolha.

Carlos Castaneda: Quando a morte permanece à sua esquerda você deve criar o mundo a partir de uma série de decisões.
Não existem decisões grandes ou pequenas, apenas decisões que devem ser tomadas agora. E não há tempo para dúvidas ou remorsos. Se eu passar o meu tempo lamentando o que fiz ontem eu evito as decisões que tenho de tomar hoje.


Sam Keen:Como Don Juan lhe ensinou a ser determinado?

Carlos Castaneda: Ele falou com meu corpo através de atos. Meu modo antigo de ser deixava tudo pendente e nunca decidia nada. Para mim, tomar decisões era algo feio. Parecia injusto para um homem sensível ter de decidir. Um dia Don Juan me perguntou: Você acha que você e eu somos iguais? Eu era um estudante universitário e um intelectual e ele era um velho índio, mas eu fui condescendente e disse: Claro que somos iguais. Ele disse: Eu não acho que somos. Eu sou um caçador e um guerreiro e você é um frouxo. Eu estou pronto a abreviar minha vida a qualquer instante. Seu mundo débil de indecisão e tristeza não é igual ao meu. Eu fiquei muito insultado e teria voltado, mas nós estávamos no meio do nada. Então eu sentei e fiquei absorvido nas armadilhas do meu ego. Eu ia esperar até ele decidir voltar. Após várias horas percebi que Don Juan ficaria ali para sempre se precisasse. Por que não? Para um homem sem assuntos pendentes este é o seu poder. Eu finalmente percebi que este homem não era como meu pai, que podia tomar 20 resoluções de ano-novo e não cumprir nenhuma. As decisões de Don Juan eram irrevogáveis enquanto durasse seu interesse. Elas podiam ser canceladas apenas por outras decisões. Então cheguei perto e o toquei, ele desistiu e voltamos para casa. O impacto deste ato foi tremendo. Ele me convenceu de que o caminho do guerreiro é um modo de vida poderoso e vigoroso.

Sam Keen:O conteúdo da decisão não é tão importante quanto o ato de ser determinado.

Carlos Castaneda: Isto é o que Don Juan entende por fazer um gesto. Um gesto é um ato deliberado que é responsável pelo poder que advém de tomar uma decisão. Por exemplo, se um guerreiro encontra uma cobra que está dormente e fria, ele pode esforçar-se por levar a cobra para um lugar quente sem ser mordida. O guerreiro pode decidir fazer um gesto sem nenhum motivo. Mas ele vai fazê-lo perfeitamente.

Sam Keen:Parecem existir muitos paralelos entre a filosofia existencialista e os ensinamentos de Don Juan.
O que você disse sobre decisões e gestos sugere que Don Juan, como Nietzsche e Sartre, acredita que a vontade, ao invés da razão, é a faculdade mais fundamental do homem.

Carlos Castaneda: Acho que sim. Deixe-me falar por mim mesmo. O que eu quero fazer, e talvez consiga executar, é superar o controle da minha razão. Minha mente tem estado no controle a minha vida toda e ela preferiria me matar a abandonar este controle. Em um dado ponto de meu aprendizado, eu fiquei profundamente deprimido. Eu estava cheio de medo, obscuridade e pensamento sobre suicídio. Então Don Juan me alertou que este é um dos truques da razão para manter o controle. Ele disse que minha razão estava fazendo meu corpo sentir que não havia sentido na vida. Uma vez que minha mente travou esta última batalha e perdeu, a razão começou a assumir o local apropriado de ser apenas uma ferramenta do corpo.

Sam Keen:O coração tem razões que a própria razão desconhece., e também o resto do corpo.

Carlos Castaneda: Este é o ponto. O corpo tem vontade própria. Ou melhor, a vontade é a voz do corpo. Este é o motivo de Don Juan consistentemente colocar suas lições em uma forma dramática. Meu intelecto poderia facilmente descartar o mundo da feitiçaria como sem sentido. Mas meu corpo foi atraído por este mundo e este modo de vida.
E quando o corpo toma o controle, um reino novo e mais saudável se estabelece.


Sam Keen:As técnicas de Don Juan para lidar com os sonhos me interessam porque ele sugere a possibilidade de voluntariamente controlar as imagens do sonho. Dessa forma ele propõe estabelecer um observatório estável e permanente dentro do espaço interior. Fale-me sobre o treinamento de sonhos de Don Juan.

Carlos Castaneda: O truque nos sonhos é sustentar as imagens tempo o bastante para que possamos examiná-las cuidadosamente. Para adquirir este controle você deve escolher uma coisa antes e aprender a encontrá-la nos seus sonhos. Don Juan sugeriu que eu usasse minhas mãos como ponto fixo e alternasse entre elas e as imagens. Após alguns meses eu aprendi a usar minhas mãos e parar o sonho. Fiquei tão fascinado por esta técnica que espero ansioso pela hora de dormir.

Sam Keen:Parar as imagens nos sonhos é parecido com parar o mundo?

Carlos Castaneda: É similar. Mas existem diferenças. Uma vez que você se torna capaz de achar suas mãos quando quiser, você percebe que isto é apenas uma técnica. O que você quer na verdade é o controle. Um homem de conhecimento deve acumular poder pessoal. Mas isto não é suficiente para parar o mundo. É necessário algum abandono. Você precisa parar a conversa que está ocorrendo internamente e render-se ao mundo exterior. 

Sam Keen:Das várias técnicas que Don Juan lhe ensinou para parar o mundo, qual você ainda pratica?

Carlos Castaneda: Minha maior técnica no momento está em romper as rotinas. Eu sempre fui uma pessoa muito rotineira. Eu comia e dormia sempre nos mesmos horários. Em 1965 comecei a mudar meus hábitos. Eu escrevia nas horas quietas da noite e dormia quando sentia necessidade. Agora eu desmantelei tanto meus hábitos usuais que posso me tornar imprevisível e surpreendente até mesmo para mim.

Sam Keen:Sua disciplina me lembrou de uma história Zen de dois discípulos vangloriando-se de feitos milagrosos. Um dos discípulos alegava que o fundador da seita a que pertencia podia ficar em uma das margens do rio e escrever Buda num pedaço de papel segurado por seu assistente do outro lado do rio. Um outro discípulo alegava que esse milagre não era muito impressionante. Meu milagre., disse ele, .é que quando tenho fome, eu como, e quando tenho sede, eu bebo..

Carlos Castaneda: É este elemento de compromisso com o mundo que me mantém seguindo o caminho que Don Juan me mostrou. Não há necessidade de transcender o mundo. Tudo o que você precisa saber está aqui defronte nós, se prestarmos atenção. Se você entrar num estado de realidade extraordinária, como faz quando usa plantas psicotrópicas, está apenas usando a força que precisa para ver o caráter milagroso da realidade ordinária. Para mim o modo se viver o caminho com coração não é introspectivo ou de transcendência mística, mas a presença no mundo.
Este mundo é o campo de caçada do guerreiro.


Sam Keen:O mundo que você e Don Juan pintaram é cheio de coiotes mágicos, corvos encantados, e magníficos guerreiros. É fácil de ver como ele pode lhe atrair. Mas, e em relação ao mundo de uma pessoa urbana moderna? Onde está a mágica nele? Se todos nós pudéssemos viver em montanhas talvez conseguíssemos manter o mistério vivo. Mas como poderemos fazer isso se estamos perto de uma estrada?

Carlos Castaneda: Uma vez formulei a mesma questão para Don Juan. Nós estávamos sentados em um café em Yuma e eu insinuei que eu poderia me tornar apto a parar o mundo e ver se pudesse viver no ermo junto com ele. Ele olhou para a janela, viu os carros passando e disse: .Ali, lá fora, é o seu mundo.. Eu vivo em Los Angeles agora e sinto que posso usar o mundo para favorecer minhas necessidades. É um desafio viver sem rotinas em um mundo rotineiro. Mas é possível.

Sam Keen:O nível do barulho e a pressão constante de massas de pessoas parecem destruir o silêncio e a solidão que poderiam ser essenciais para parar o mundo.

Carlos Castaneda: Não de todo. Na verdade, o barulho pode ser usado. Você pode usar o barulho da buzina para treinar a si mesmo ouvir o mundo exterior. Quando paramos o mundo, o mundo que paramos geralmente é o que é mantido pelo diálogo interno. Uma vez que você para o blá-blá-blá interno você para de manter este mundo. A descrição entra em colapso. É quando começa nossa mudança de personalidade.
Quando você se concentra nos sons, percebe que é difícil para o cérebro categorizar todos os sons, e em pouco tempo você para de tentar. Não é como a percepção visual que nos mantém formando categorias e pensando. É tão revigorante quando você consegue parar de falar, categorizar e julgar.


Sam Keen:O mundo interno muda, mas e em relação ao externo? Nós podemos revolucionar a consciência individual, mas ainda assim não conseguir tocar as estruturas sociais que criam nossa alienação. Existe um lugar para a reforma social e política no seu pensamento?

Carlos Castaneda: Eu vim da América Latina onde os intelectuais estão sempre falando sobre revolução política e social e onde um muitas bombas são lançadas. Mas a revolução não mudou muita coisa. Requer pouca coragem bombardear um prédio, mas para desistir de cigarros, parar de ser ansioso ou parar a tagarelice interna, você tem que reconstruir-se. É aí que começa a verdadeira reforma. Don Juan e eu estávamos em Tucson não muito tempo atrás quando estava tendo a Semana da Terra. Alguns homens estavam palestrando sobre ecologia e os males da guerra do Vietnã. Enquanto isto, eles fumavam. Don Juan disse: Não posso imaginar como eles podem se preocupar com os outros se eles não se gostam de si. Nossa primeira preocupação deve ser com nós mesmos. Eu posso gostar dos meus semelhantes apenas quando estiver no auge do meu vigor e sem depressão. Para estar nesta condição devo manter meu corpo preparado. Toda revolução deve começar aqui, neste corpo. Eu posso mudar minha cultura mas apenas através de um corpo impecavelmente sintonizado com este mundo estranho. Para mim, a verdadeira realização é a arte de ser um guerreiro, a qual, como diz Don Juan, é o único meio de balancear o terror de ser um homem com a maravilha de ser um homem.

Entrevista com Carlos Castaneda para revista Veja em 1975

Entrevista com Carlos Castaneda publicada em 1975 

Fonte: Revista Veja nº356 -1975 

Nota: Um pouco depois da maliciosa publicação da matéria da revista Time - que desmentia Castaneda num momento em que este tornava-se notório e atingia o centro dos debates afirmando, baseada em obscuros documentos levantados, ser o autor peruano de Cajamarca, e não brasileiro, Castaneda concedeu esta entrevista à Revista Veja. A condição sine qua non para isso foi de que a entrevista deveria sair primeiro no Brasil. O rapaz que fez o free-lancer para a Veja, uma espécie de TIME brasileira, pôde então atestar que Castaneda falava perfeitamente português, com sotaque regional. Castaneda forneceu à revista negativos (fotos) que fez durante suas viagens ao México - provas documentais de seu trabalho antropológico e pesquisa de campo. Infelizmente a Veja optou por não polemizar, e colocou no sub-título não que Castaneda era brasileiro, mas sim que era um "homem só e sem pátria". Após esta entrevista, Castaneda ficou cerca de 10 anos sem falar com a imprensa.
Após quinze anos de lições, o brasileiro, talvez peruano ou americano, aprendeu a não ter biografia nem raízes.
        Desde que começou a relatar em livros seus encontros com Don Juan, que remontam a 1960, Carlos César Arana Castaneda transformou-se na mais invisível e impalpável personalidade literária da atualidade. Fragmentos incompletos de sua biografia apareceram nas duas únicas publicações a que concedeu entrevista, as revistas Time Psychology Today,não se deixou fotografar nos últimos dez anos e não se preocupou em esclarecer algumas dúvidas cruciais. Assim, ele teria nascido no interior de São Paulo, no dia de natal de 1935, segundo disse ao Time. Mas, de acordo com a revista, o nascimento de deu dez anos antes numa cidade do Peru.
        Comunicado desta descoberta, Castaneda reagiu de maneira impecável para um aprendiz de feiticeiro que aspira apagar sua identidade pessoal: "Estas estatísticas não significam nada. Importante o que nós somos, não o que éramos". Assim, com essa nacionalidade incerta e com uma idade que caminharia para os 40 ou 50 anos, embora certamente aparentasse menos, os únicos sinais da existência terrestre de Castaneda eram um Volkswagen e duas casas de sua propriedade, na Califórnia. No começo do ano passado, o estudante brasileiro Luiz André Kossobudzki, então bolsista de educação  na Universidade da Califórnia (UCLA), encontrou-o num jantar beneficiente ao lado de personalidades literárias "normais", como Irving Stone e Irving Wallace. Quinze meses depois, no fim de março último, recebeu de Castaneda os negativos das fotos que o autor tirara no México, e que VEJA publica junto com esta entrevista exclusiva, à qual o entrevistado impôs a condição de que deveria ser publicada no Brasil antes de qualquer outro país. Kossobudzki recorda os seus encontros:
          "Eu, minha mulher e mais quatro casais de bolsistas estrangeiros éramos talvez os únicos convidados ao jantar que não tínhamos os nomes gravados em alguma placa de honra. Tentamos, sem conseguir, um lugar na mesa de Castaneda, mas depois do jantar ele mesmo veio até nós. Disse-lhe logo que não acreditava ser ele brasileiro. Começamos a falar em inglês, mas logo depois ele se dirigiu até nós com lusitana fluência (inclusive sotaque) e afirmou ter nascido no interior do estado de São Paulo, numa cidade do vale do Paraíba, e que passara parte de sua infância em Juqueri* .Combinamos então nos encontrar novamente para uma feijoada, mas Castaneda desapareceu por vários meses. Um telefonema do seu agente  literário informou que ele ainda estava interessado em me ver. Finalmente, conversamos três vezes, uma na minha casa e outras duas no campus da UCLA, onde ele trabalha de catorze a dezoito horas diariamente, em suas pesquisas sobre étnico-hermenêutica (estudos da interpretação perceptiva de diferentes grupos étnicos). Castaneda aparenta ter 35 anos, 1,70 metros de altura e uns 70 quilos. Fisicamente, passaria por caboclo mato-grossense ou mesmo nordestino".
 
*Não existe nenhum município paulista com esse nome. Juqueri, no entanto, é o nome de um estabelecimento para doentes mentais no município de Franco da Rocha, na Grande São Paulo, que costuma ser confundido com o nome do hospital. Juquiri é o nome antigo do município de Mairiporã, também na Grande São Paulo.
Aprendendo a viver com a bruxaria
   VEJA - Quando se lê sobre Don Juan, tem-se a impressão que ele é um homem pobre e com um vasto conhecimento da vida. O senhor poderia falar de sua surpresa ao encontrá-lo de terno em "Porta para o Infinito"?
   CASTANEDA - Tremi de medo, pois estava acostumado a vê-lo somente em roupas de campo. Isto ocorreu na fase final dos ensinamentos e tinha uma razão de ser. Don Juan revelou-me que era proprietário de diversas ações na Bolsa de Valores, e tenho quase certeza que se ele fosse um homem tipicamente ocidental estaria vivendo em um apartamento  de cobertura no centro de Nova York. Finalmente aprendi que as duas realidades poderiam ser dividas no que Don Juan denominava tonal (consciente) e nagual (que não se fala). Na realidade do consenso social, o bruxo, o homem de conhecimento, é um perfeito "tonal" - um homem do seu tempo, atual, que usa o mundo da melhor forma possível. Nós usamos história como uma forma de recapturar o mundo passado e planejar para o futuro. Para o bruxo, passado é passado e não existe história pessoal nem coletiva.
  
   VEJA - O principal de seu encontro com Don Juan está escrito no livro "The teachings of Don Juan"(na versão brasileira, a Erva do Diabo"), mas em lugar nenhum existe menção de exatamente onde estiveram. Seria possível uma descrição mais detalhada do local?
   CASTANEDA - Na fronteira entre os Estados da Califórnia (Estados Unidos) e Sonora (México) existe uma cidade chamada Nogales. Partindo de Nogales, a rodovia principal passa pela cidade de Hermosillo, capital de Sonora, pela cidade de Guayamas e finalmente cruza a Estácion de Vicam. A oeste da Estação de Vicam, em direção ao Pacífico, encontra-se a cidade de Vicam, habitada em sua maioria por índios yaquis. Vicam é o local onde pela primeira vez encontrei Don Juan. Perto de lá obtive os ensinamentos.
  
   VEJA - Para não tirar a liberdade de Don Juan, até hoje o senhor não havia revelado este local. Como agora se sente livre en descrevê-lo com exatidão?
   CASTANEDA -  Porque agora ninguém conseguiria achar Don Juan;  ele não está mais por lá, e Don Genaro também sumiu das montanhas do México Central  (Sierra Madre Ocidental). Não existe jeito nenhum de encontrá-los. Don Juan me mostrou e ensinou tudo o que ele podia e por isso  não há necessidade de que ele permaneça à  minha disposição. Da mesma forma, você sabe que se quiser me encontrar é só ir até a UCLA, deixar um recado ou me procurar na biblioteca de pesquisas. Mas, se eu deixar de vir à UCLA, você não terá a miníma idéia de onde me encontrar. Como Don Juan, procuro viver como feiticeiro.
 
   VEJA - Muitas pessoas, eu inclusive, encontram dificuldades em aceitar factualmente as descrições dos ensinamentos de Don Juan. O senhor se preocupa com o  fato de as pessoas reagirem dessa forma?
   CASTANEDA - Não, porque não dou ênfase na importância de minha pessoa. este é um ponto crucial dos ensinamentos que recebi de Don Juan. Raramente converso com alguém, e quando converso é  face a face. Nada de gravadores ou fotografias, que trariam peso sobre a minha pessoa. Além de ferir uma das premissas básicas de feitiçaria e bruxaria, eu estaria tolhendo minha própria liberdade. Quando enfatizo a minha pessoa, estou me tachando a mim mesmo, estou colocando nas minhas costas um peso que vai além das minhas possibilidades de carregá-lo. Colocar tal peso nas costas é dar uma enorme importância à minha própria pessoa. Durante os ensinamentos, Don Juan fazia esboços na areia do deserto com o dedão do pé e preenchia os círculos com verbosidade. Ele dizia que "cargase a uno mismo" conduz a pessoa a um senso "importância personal" que combinados não permitem "acciones" por parte da pessoa. Quanto mais peso as pessoas acumulam, mais importantes elas se sentem, e menos ações elas executam.
 
   VEJA - Por que então publicou seus livros?
   CASTANEDA - Porque esta era a minha tarefa. O bruxo cumpre tarefas que são colocadas em lugar do  peso sobre si mesmo e da importância pessoal. Meu trabalho não é feito de erudição, mas uma recoleção da vida que Don Juan colocou em seus ensinamentos. O bruxo cumpre as tarefas que lhe dão satisfação. Ele as cumpre sem esperar por reconhecimento da sociedade ou coisa que o valha, o que seria o "carregar-se a si mesmo" exercitado pelo erudito, com o objetivo de obter importância pessoal, o que não é meu caso. Por exemplo, se esta entrevista for tomada como um ato de bruxaria, ela se torna uma tarefa a ser cumprida.
  
   VEJA - Esta entrevista, seu trabalho, sua obra, e mesmo o fato de trocarmos idéias por várias horas, tem um efeito que me parece ir além do simples cumprimento de tarefas. Elas lhe trazem satisfação, caso contrário não as faria. Além do mais, o senhor espera que sua mensagem, os ensinamentos de Don Juan, tenham um impacto sobre público. Não seria este o caso de cumprir tarefas e esperar pelo reconhecimento da sociedade?
   CASTANEDA - Eu cumpro minhas tarefas tão fluidamente que elas não me afetam em termos de auto-importância, mas sim em termos de como vivo minha vida. Conheço dúzias de "professores" que se colocam numa torre de marfim de conhecimento: eles sabem tudo, e comandam o espetáculo para as galerias; quanto mais aclamados, ou quanto mais reconhecimento eles recebem, mais auto-importantes se sentem, mas esta mesma auto-importância se torna peso, a cruz a ser carregada,  e eles como pessoas não são nada. O trabalho as afeta em termos de auto-importãncia, mas não em termos de vida pessoal. A mim o trabalho afeta em termos de vida pessoal, mas não de auto-importância. Don Juan me alertou e aconselhou que nunca me tornasse um pavão, "pavo real", que é o resultado à ênfase da importância pessoal. Quanto menos a pessoa pensa e "pseudo-age" em termos de auto-importância ela se torna mais completa. E quanto mais auto-importante se sente, mais incompleta se torna. O ser incompleto nasce da incessante procura por reconhecimento social.
  
   VEJA - Mas se a pessoa age, não estaria automaticamente à procura de auto-reconhecimento?
   CASTANEDA - Não, se estiver agindo como um bruxo. O bruxo vive a vida por si e para si e não para as galerias. Ele não se deixa influenciar pelas reações de consenso social, pois não age em termos de auto-importância. Ele sabe "parar o mundo", ou melhor, ele tem a capacidade de "não fazer".
 
    O "mundo parado", por um passe de mágica .
   VEJA - E que significa "fazer, "não fazer" e "parar o mundo"?
   CASTANEDA - O objetivo final do bruxo é se tornar um "homem de conhecimento, mas antes ele tem que aprender a viver como um guerreiro-pirata. Ele tem que ser um impecável caçador à procura de coragem e disciplina. O guerreiro-pirata age por si mesmo, e assume a responsabilidade por suas ações. No processo de me tornar guerreiro-pirata eu encontrei poder pessoal, isto é, o poder da coragem e disciplina. Don Juan me ensinou a enxergar, ver o mundo ao invés de simplesmente olhar. Ele ensinou-me a interpretar o mundo não pelo que se apresenta na superfície, mas pela essência. Porém, antes poder enxergar e interpretar o mundo como um guerreiro-pirata, como um bruxo, tive que aprender como "não fazer", como "parar o mundo". Como você pode notar, é quase que uma taxinomia de tarefas. Para se ter o entendimento de "não fazer" é necessário explicar  o significado de "fazer". "Fazer" é o consenso que torna o mundo existente. O mundo da nossa realidade é realidade porque estamos envolvidos no "fazer" dessa realidade. As pessoas nascem com uma auréola de força, poder, que se desenvolve e se entrelaça com o consenso dominante. As pessoas olham o mundo da forma como lhe foi ditada, com os olhos do consenso dominante. Por outro lado, "não fazer" é possível quando uma auréola extra de poder se desenvolve para formar a existência da realidade de um outro mundo. O guerreiro-pirata não escapa do "fazer" do mundo, mas luta dentro desta realidade, a realidade do consenso dominante. o que o auxilia na criação da auréola extra de poder. O ato de "não fazer" conduz ao "parar o mundo", que é o primeiro passo para "enxergar". O mundo da realidade ordinária, do dia-a-dia, nos parece do jeito que é por causa do consenso social. "Parar o mundo" significa interromper a corrente comum de interpretação do mundo, do consenso dominante, ou em outras palavras, parar o consenso é enxergar o mundo como bruxo, numa realidade não-ordinária. "Parar o mundo" é viver num espaço temporal mágico, enquanto que viver na realidade do consenso é viver num espaço temporal ordinário.
   VEJA - Um bruxo é um pragmático, e o senhor mesmo se rotula assim. Qual seria a aplicação prática de "fazer", "não fazer" e "parar o mundo"?
   CASTANEDA - Você fuma desbragadamente, como um desesperado. Eu fumava como você, e cheguei a fumar quatro maços de cigarros por dia, até que Don Juan sugeriu que eu usasse a minha compulsão para parar de fumar. Eu deveria ficar envolvido no "não fazer" de fumar. Para isso eu teria que observar o fazer de fumar. Comecei então a observar o "fazer" de levantar pela manhã e procurar imediatamente meus cigarros, o "fazer" de colocá-los no bolso, o "fazer" de apalpar o bolso da minha camisa com minha mão esquerda para ter certeza de que os cigarros lá estavam. O lugar do cigarro, o fumar de dois deles no caminho da universidade, e assim por diante, constituíam o meu "fazer" de fumar. Como eu,  você pode observar o que constitui o seu "fazer"  de fumar. Uma medida sistemática de fazer  leva a pessoa a não executar os detalhes do ato de fumar. Para "parar o mundo" de fumar a pessoa tem que aprender a compulsivamente dizer não para o "fazer" de fumar. Este exemplo é grosseiramente uma aplicação dos ensinamentos, pois eu parei de fumar logo nos primeiros contatos com Don Juan, mas somente consegui "parar o mundo" da realidade ordinária depois de dez anos. A partir deste ponto Don Juan deixou de usar plantas alucinógenas como parte dos ensinamentos. 
 
Guias para se acabar com o bom senso
  VEJA - O senhor não fuma, não bebe e evita até café. Como então vê o uso de drogas como parte dos ensinamentos de Don Juan?
   CASTANEDA - Don Juan usou psicotrópicos e plantas alucinógenas como um auxílio aos ensinamentos. Uma vez atingido o objetivo, estes veículos se tornaram desnecessários. As drogas são maléficas para o corpo, e não tem nenhum defeito além de uma certa qualidade que o bruxo necessita.
  
   VEJA - De que modo as drogas serviam de instrumento auxiliar aos ensinamentos de Don Juan?
   CASTANEDA - O mundo como nós o vemos é apenas uma descrição, e cada item da descrição é uma unidade, o que eu chamo de "gloss" (aparência externa") Uma árvore é um gloss, um quarto ou uma sala são glosses. Nós colocamos significado ao gloss-quarto como sento a reunião de pequenos glosses -  cama, cadeira, camiseira, armário.  A realidade do consenso é formada por uma corrente infinita de glosses, os quais, por sua vez são formados e interligados por pequenos glosses. Esta corrente forma, na nossa realidade, um sentido comum, isto é, esta corrente de glosses tem que fluir em uma direção pré-concebida que nós chamamos com senso ou sentido comum. Para quebrar ou interromper a corrente, o bruxo usa drogas que criam um  espaço vazio na corrente, implantando uma nova direção, a direção do sentido comum ou do bom senso da realidade não ordinária (realidade da bruxaria). Sentido comum e bom senso estão diretamente ligados ao nosso corpo. Com o uso de drogas, há uma interrupção no bom senso e abertura de uma nova direção, e essa nova direção só pode ser encontrada com um guia (bruxo), pois de outra forma o uso de tais drogas  é sem valor. O homem geralmente tem a idéia de gozar a vida através dos vícios. Um viciado é uma criança profissional. Interromper a corrente de glosses, parar o mundo, com o uso  de drogas só pelo prazer de interromper, só pode causar dano, além de ser uma brincadeira cujo preço é caro. Uma vez que o corpo aprendeu  a interromper a corrente, não há mais necessidade de auxílio para tal interrupção. A pessoa interrompe pela própria vontade.
 
 
Uma estranha psicoterapia: sentir-se morto
   VEJA - Acha que o processo de interrupção voluntária da corrente do "bom senso" seria eficaz se aplicado  à psicoterapia?
   CASTANEDA - O sucesso de Don Juan como psicoterapeuta é impressionante. Ele me fez cônscio de que era uma criança profissional, que eu estava colocando muito peso sobre mim mesmo, enfatizando minha importância de pessoal, e não transformando em ações minhas fantasias. Ele me ensinou a viver para o agora, a encarar a minha morte como um fato inevitável e existente em minha vida. O conceito de morte deve ser encarado como uma realidade. Don Juan me ensinou que, se eu me considerasse como morto, nenhuma das minhas ações teria importância pessoal, e com isso eu poderia mudar, ou mudanças poderiam ser feitas e tarefas serem cumpridas. O fato inevitável de morte é muito mórbido para o homem ocidental, e em conseqüência o Ocidente procura interação social com o objetivo de ajustamento ao "bom senso".
   VEJA - Seria correto dizer que a pessoa, em nossa realidade rotulada de psicótica, para Don Juan seria apenas a pessoa que acidentalmente interrompeu a corrente do "bom senso" e não conseguiu fazer esta corrente?
   CASTANEDA - Correto. O bruxo quebra a corrente do bom senso por vontade própria. não é uma coisa acidental. Nas primeiras experiências tenho quase certeza que sem um guia teria perdido o contato com a realidade do consenso; em outras palavras, eu não seria  capaz de encontrar o caminho de volta a essa realidade. O guia orienta o aprendiz a sair da realidade do consenso e a entrar na estranha realidade da bruxaria, bem como sair daquela estranha realidade e voltar a  realidade do consenso. Este exercício é repetido até que o aprendiz adquira o domínio da sua própria vontade. Para o psicótico, o exercício sobre a direção de um psicólogo clínico ou de um psiquiatra resume-se a retornar à  realidade do consenso, e a permanecer conformado. O bruxo, além de guia, é o modelo de "homem do conhecimento". Para Don Juan, qualquer mudança somente é possível se a pessoa praticar seus próprio ensinamentos. Novamente a filosofia "eu faço o que eu digo" prevalece.
    VEJA - "Porta para o Infinito" menciona o uso de sonhos como um exercício no domínio e controle da própria vontade. Seria este controle da mesma natureza do domínio da própria vontade ao que o senhor acaba de se referir?
    CASTANEDA - Eu menciono neste livro os diversos exercícios  para controle dos sonhos, ou seja, para que a pessoa possa colocar os sonhos  a seu serviço e sonhar produtivamente. Este sonhos requerem o mesmo domínio da vontade que é necessário para sair e voltar à realidade ordinária. Sonhos para um bruxo não são simbólicos, mas frutos do controle que adquire através dos ensinamentos. Ele dorme sonhando sonhos produtivos, como que uma continuação do dia a dia, ao invés de sonhar sonhos ordinários comuns, e sem controle. Aos poucos, uma pessoa consegue se disciplinar, a ponto de, sonhando, ser capaz de ver a sua própria imagem dormindo a sonhar. O caso extremo deste controle pode ser exemplificado pelo que Don Genaro afirma ser capaz - materialização de uma duplicada da sua própria pessoa. Com o controle dos sonhos a pessoa pode aumentar a sua capacidade de ação. Todas essas realidades não exploráveis da realidade do consenso formam um todo - o "homem de conhecimento".
   VEJA  - O senhor acha que nós exploramos e usamos apenas parcialmente o nosso potencial  por razões inerentes à nossa educação formal?
   CASTANEDA - A educação formal e informal do homem ocidental não dá margem a nada estranho ou diferente do consenso social. O que é fora da norma do nosso bom senso é considerado anormalidade. Também falta ênfase na noção de responsabilidade para consigo mesmo: não falamos suficientemente da responsabilidade para as nossas crianças,e por esta razão poucos deixam de ser crianças, e vivem a vida como crianças-profissionais. Explicando melhor: a criança profissional é a pessoa que precisa de carinho e é recompensada por meio de atenção dispensada a sua pessoa. Ela é auto.importante, um eterno  infant terible. Queria deixar de uma vez por todas de ser criança, mas eu era muito querido por mim mesmo, e sempre tinha uma desculpa para que continuasse alimentando minha auto-importância. Não fazia nada, não produzia nada, ações eram abafadas pelos meus planos e decisões, e pelo meu senso de importância pessoal. Até que aprendi com Don Juan a deixar de ser criança profissional e me tornei guerreiro-pirata.. Ficar sentado, esperando que me dessem tudo ou sonhando acordado com a glória da minha auto-importância, não me trouxe nada. Eu tive que ir procurar coragem e disciplina.
  
  
   De criança profissional a guerreiro-pirata
   VEJA - O senhor vive como um bruxo, isto é, uma vida de anonimato, enquanto o seu trabalho é público e de muito sucesso. Qual é a satisfação pessoal que resulta deste aparente antagonismo entre autor e pessoa?
 
   CASTANEDA - Minha satisfação vem de escrever impecavelmente e de apresentar minha pessoa à luz da verdade. Eu realmente não vejo antagonismo, pois minha vida pessoal é um reflexo da minha obra. Novamente afirmo que faço aquilo que digo, pratico aquilo que prego. E uma vez que sou honesto comigo mesmo, não me importa o que e como a galeria pensa ou reage. Desta forma, sou livre dos altos e baixos. Veja o exemplo de Tinothy Leary, o guru do ácido lisérgico. Ele é um exemplo típico de excesso de auto-importância. Lá pelas tantas o peso se tornou demasiado e ele teve que pagar o preço extremo. Muitos são os escritores que pregam mas não seguem a própria pregação, muitas são as pessoas que promovem um corpo forte e uma mente sadia, mas acabam destruindo gradativamente o próprio corpo e mente. Don Juan era o modelo que fazia e praticava tudo aquilo que era colocado como tarefa para mim, durante todos os anos da aprendizagem.
   VEJA - O senhor mencionou o modelo de Don Juan, mas foi também exposto a um outro modelo: o consenso social. Como alia esses modelos em sua vida?
   CASTANEDA - O modelo de Don Juan me deu os parâmetros de uma realidade diferente da do consenso social. Outro modelo me conduzia ao eterno enfant terrible. Ao longo dos ensinamentos, abandonei este último. Um modelo me conduzia à criança profissional, e outro ao verdadeiro guerreiro-pirata. Quando a pessoa tira o senso de auto-importância o senso de auto-importância do seu caminho e toma a consciência de que o homem que puxa a corda e trama os pauzinhos é tão humano quanto eu ou você, ela pode atingir aquilo que quiser. A pessoa pode ser ultra-inteligente e cheia de recursos, mas se somente espera que as coias lhe venham às  mãos, quando não é atendida pelo mundo cai num estado de ódio, remorso e medo. O guerreiro-pirata não tem medo, ele não espera que as coisas venham até ele. Ele age, cumpre suas tarefas, e ao mesmo tempo não se preocupa com as conseqüências.
Notas
1 Em uma entrevista mais recente, concedida a Carmina Fort, Castaneda relata que Don Juan, para fazê-lo parar de fumar, certa vez levou ao deserto, avisando que iam passar lá vários dias. Castaneda fez um estoque de cigarros, com várias caixas embrulhadas. Enquanto dormiam, os cigarros sumiram. Castaneda, desesperado, procurava uma explicação. Don Juan disse que talvez tivesse sido os coiotes. Rondaram as habitações próximas mas não acharam nada para Castaneda fumar. Esse acontecimento foi decisivo para ele largar o mau-hábito (nota do redator) .