INTRODUÇÃO
A extensão dos poderes do Estado e o papel da Administração
Pública na sociedade são temas que suscitam grandes controvérsias e em torno
dos quais não se pode, rigorosamente, falar de consenso ou da existência de uma
posição dominante. Por se tratar de questões que emanam do âmago da reflexão e
da prática políticas, as formulações que venham a ser produzidas a respeito
carregarão, sempre, um forte viés ideológico, alimentadas por diferentes visões
de mundo, concepções e valores dos quais todos os indivíduos das sociedades são
portadores.
O reconhecimento desses vieses não nos deve desencorajar a
enfrentar a questão nem tampouco nos autoriza a fazer qualquer tipo de
formulação, numa espécie de “vale-tudo”. Ao longo de séculos, a civilização
ocidental veio recorrentemente colocando-se questões relativas ao Estado, ao
exercício do poder e às relações entre Estado e sociedade, e essa reflexão
socialmente acumulada deve nos servir de base para refletirmos sobre o papel
dos gestores públicos na administração do Estado brasileiro em todas as suas
esferas: municipais, estaduais e federal.
Da tradição ocidental deriva uma dicotomia que remonta ao Direito
Romano, que ganharia novos contornos com o desenvolvimento do Estado moderno,
tal como o conhecemos contemporaneamente, e que é central para o
desenvolvimento do nosso tema: a dicotomia entre público e privado, da qual
todos os outros temas a serem aqui tratados decorrem logicamente.
A DICOTOMIA PÚBLICO/PRIVADO
Toda dicotomia carrega um
elevado grau de arbitrariedade na medida em que pretende dar conta de todo o
universo de possibilidades. No caso da dicotomia público/privado, significa que
aquilo que está na esfera pública deve necessariamente estar fora da esfera
privada, e tudo o que não se situar na esfera pública deve estar
obrigatoriamente contido na esfera privada. De acordo com essa lógica de ferro,
um termo exclui necessariamente o outro, e ambos recobrem a totalidade do
existente e do imaginável. No entanto, no mundo real, as definições nem sempre
são tão claras quanto no mundo dos conceitos.
Certamente você deve estar
associando, sem dificuldade, o Estado à esfera pública e a empresa capitalista
à esfera privada. No entanto, à medida que vamos nos distanciando dos casos extremos, a classificação vai se
tornando menos óbvia.
Por exemplo, em que esfera você situaria a empresa pública? E os partidos
políticos? E as Organizações Não Governamentais(ONGs)? Antes de respondermos a
essas perguntas, vamos
examinar os
componentes de cada um dos termos, tentando identificar o que é fundamental em
um e em outro?
A definição da esfera pública é
uma construção, ao mesmo tempo, intelectual e coletiva. Isso quer dizer que na
substância ou na materialidade das coisas não há nada que nos permita situar, inequivocamente,
um bem ou um serviço nela. A construção da esfera pública é, na verdade,
resultado de uma convenção social específica. Assim sendo, irá integrar a
esfera pública aquilo que toda coletividade, e não apenas
uma parte dela, pactuar, explícita ou implicitamente, ser de interesse comum.
Tudo o que a
coletividade chamada povo convencionar, em um determinado momento de sua
história, ser de interesse ou de propriedade comum, integrará a esfera pública,
ficando todo o restante adstrito à esfera privada.
Disso se conclui logicamente que
não há nada que seja intrinsecamente público nem intrinsecamente privado, já
que a definição de ambos resulta de convenção coletiva.
Definidos os conceitos desta
forma, você logo irá perceber que o público tem precedência sobre o privado,
pois a delimitação da esfera pública irá anteceder, temporal e logicamente, a circunscrição
da esfera privada. Isso quer dizer que o espaço público, e tudo o que nele se
inserir, será sempre explicitado positivamente, ao passo que o espaço privado
será delimitado de forma residual, cabendo nele tudo aquilo que ficar de fora
da esfera pública.
A construção da esfera pública
será também sempre historicamente delimitada. Aquilo que em um determinado
momento histórico é considerado como indubitavelmente público pode não o ser em
outro. Para explicitarmos esse ponto relevante, vamos ver alguns exemplos.
Exemplo 1
Contemporaneamente, consideramos
que a defesa da coletividade das agressões externas, um bem claramente público,
é encargo de uma instituição igualmente pública – o exército nacional, ou mais genericamente, as forças
armadas nacionais, regulares e profissionais. No entanto, nem sempre foi assim.
Durante a maior parte da história do Ocidente, essa função foi delegada a
exércitos de mercenários; portanto, a grupos privados contratados pontualmente
pelos governantes para a defesa dos seus territórios e populações.
Exemplo 2
A coleta de impostos é, hoje,
considerada uma função eminentemente pública, que deve ser executada por
agentes públicos. No entanto, durante a Idade Média, os impostos eram cobrados
por particulares daqueles que utilizavam as estradas ou pontes situadas em
terras sob o seu domínio.
Exemplo 3
Nas sociedades ocidentais
contemporâneas – sejam elas repúblicas, como o Brasil e Portugal, ou monarquias
constitucionais, como o Reino Unido e a Espanha –, o patrimônio e o orçamento públicos
estão inteiramente separados do patrimônio e do rendimento dos governantes.
No entanto, antes da formação do
Estado moderno, essa separação não existia, assim como continua não existindo
em outras localidades como o Sultanato de Brunei, na Ásia, onde o patrimônio do
Estado é contabilizado como de propriedade do sultão, o que faz do monarca de
tão diminuto país o indivíduo mais rico do mundo.
Ficou mais claro agora?
Pois bem, a clara separação
entre esfera pública e esfera privada é a marca distintiva das sociedades
capitalistas e democráticas contemporâneas em relação às demais. Dessa separação
fundamental decorrem todas as outras diferenciações relevantes no interior
dessas sociedades, como a existente entre um Direito Público e um Direito
Privado; entre Estado e sociedade civil; e entre poderes do Estado e direitos
do cidadão. Outra diferença importante entre essas sociedades e as demais
encontra-se na forma de administrar o Estado.
De acordo com o sociólogo alemão
Max Weber, nas sociedades tradicionais – ou seja, antes que o capitalismo
tivesse se desenvolvido plenamente nas sociedades ocidentais – predominava a
administração patrimonial, caracterizada por uma forma de gestão dos negócios
públicos como se estes fossem assuntos privados dos governantes.
Seria apenas com o
desenvolvimento do capitalismo, com a formação do Estado moderno que o
acompanharia e, finalmente, com a democratização dos Estados liberais que iria
se desenvolver e se impor a administração burocrática, caracterizada por uma
série de procedimentos administrativos, baseados na legalidade dos atos, na impessoalidade
das decisões, no profissionalismo dos agentes públicos e na previsibilidade da
ação estatal. Essa nova forma de administração foi estudada à exaustão por
Weber.
Na esfera pública, os indivíduos são sempre
concebidos como cidadãos, seja na posição de agentes do poder público, isto é,
de servidores do Estado, seja na condição de simples usuários dos serviços públicos ou
sujeitos submetidos às leis e normas impostas pelo Estado.
Já na esfera privada, os indivíduos são concebidos
como pessoas físicas à procura da satisfação de seus interesses particulares,
podendo se associar e constituir pessoas jurídicas com a finalidade de perseguir os
mais diferentes objetivos – econômicos, políticos, religiosos, culturais etc.
Mas, preste bem atenção: a personalidade coletiva resultante dessa associação
segue, no entanto, sendo privada, e não se confunde, em momento nenhum, com a
associação e coletividade públicas.
Mas, por que certas associações têm caráter público e outras privado? Para responder a essa pergunta, vamos analisar, a seguir, a diferença entre organização e instituição, que é fundamental para a devida compreensão das diferenças existentes entre esfera pública e esfera privada nas sociedades contemporâneas.
Chamamos de organização as
associações do setor privado. Sua natureza, características e dinâmica foram, e
são, exaustivamente estudadas pela teoria das organizações, disciplina central
da administração de empresas.
Que características
são essas?
A principal delas é a de que as organizações possuem missão* e objetivos* que são auto atribuídos pelos seus membros. Nada obriga uma organização a continuar perseguindo os mesmos objetivos – e nem mesmo a continuar existindo – a não ser a vontade dos seus próprios membros. Estes possuem inteira autonomia – respeitados os limites e imposições legais – para definir e redefinir a sua missão, estabelecer e modificar os seus objetivos, decidir por sua expansão ou retração, diversificação e reorientação de atividades ou mesmo pela sua completa dissolução.
Essas características das
organizações privadas, existentes na sociedade civil, não encontram qualquer
paralelo nas organizações estatais, que, por serem instituídas pelo Estado para
desempenhar funções de interesse público, são mais frequentemente chamadas de
instituições. Já as organizações públicas encontram-se subordinadas ao Estado e
têm sua missão e seus objetivos determinados legalmente e não autonomamente,
como nas organizações privadas.
Isso, no entanto, não quer dizer
que organizações públicas não possam gozar de certa autonomia. Por exemplo, na Administração
Pública brasileira, os órgãos que integram a administração indireta, como
autarquias e fundações, estão legalmente investidos de
autonomia patrimonial, financeira e administrativa em relação aos órgãos
centrais do governo, aos quais se encontram formalmente vinculados. Mesmo os
órgãos que compõem a administração direta federal possuem a prerrogativa de
planejar as suas atividades e estabelecer suas metas anuais. No entanto, essa
autonomia nunca será mais que relativa. Acabamos de mencionar que as
organizações do Estado podem ser classificadas em duas categorias: as que
compõem a Administração direta; e as que integram a Administração indireta.
No Quadro abaixo podemos melhor
visualizar as diferenças entre essas duas categorias de Instituições Públicas.
As organizações que integram a
Administração indireta são de diferentes tipos. No Quadro abaixo você
encontrará uma breve descrição e alguns exemplos dos tipos de organizações da Administração
indireta.
Contrariamente às organizações –
que são auto referenciadas, tendo interesses próprios e objetivos variáveis com
o tempo –, as instituições têm objetivos permanentes a serem perseguidos em
favor de toda a coletividade e não dos membros que a integram.
As organizações agem e mudam
conforme a lógica e dinâmica do mercado, seja para sobreviver e se adaptar às
novas condições de concorrência, seja para dessas tirar o maior proveito privado.
Já as instituições não agem para sobreviver ou se expandir, aproveitando as
condições de mercado, mas para influenciar, regular ou mesmo substituir o
mercado. Para evidenciar as funções das organizações, veja a seguir alguns
exemplos.
Exemplo 4
As instituições públicas de
ensino atuam em uma área constitucionalmente aberta à iniciativa privada. Sua
existência em um mercado concorrencial, como o educacional, por exemplo, só se
justifica se:
·
Influenciar positivamente a
qualidade da educação em geral, por meio da oferta de um ensino público de qualidade
elevada, de forma a levar o setor privado a ofertar um serviço com qualidade
equivalente a fim de poder concorrer com o setor público – como no caso da
educação superior; ou
·
Garantir o acesso de toda
população a um serviço considerado essencial e obrigatório, cuja
universalização não seria alcançada por meio do mercado – como é o caso da
educação básica pública e gratuita.
Exemplo 5
As agências regulatórias, que
têm por finalidade regular diretamente as condições de concorrência e de oferta
de serviços em um determinado mercado, visando o benefício de toda a coletividade.
Exemplo 6
As organizações que exercem suas
funções de forma monopolista, como:
·
A Casa da Moeda, encarregada de
emitir o meio circulante;
·
O Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatísticas (IBGE), encarregado da produção de estatísticas
oficiais;
·
A Polícia Federal e polícias
civis dos Estados, a quem cabe a investigação de crimes e ilícitos; e
·
Os ministérios públicos, federal
e dos Estados, incumbidos de propor ações penais.
Apesar das diferenças que
podemos identificar entre as organizações privadas e as instituições públicas,
entre ambas existe uma área de diálogo e de influências mútuas, que é
precisamente a de gestão organizacional.
Observe que da mesma forma que a
administração burocrática surgiria no seio do Estado como forma de organização,
estruturação e gestão das atividades públicas e posteriormente iria ser adotada
pelas grandes organizações privadas, como sindicatos, partidos políticos e
empresas capitalistas, muitas das inovações organizacionais e de gestão
ocorridas no interior das empresas privadas e sistematizadas pela teoria das
organizações iriam ser adotadas pela Administração Pública.
Entre a administração de empresas e a administração pública
existe, no mínimo, o substantivo administração em comum, o que indica que ambas
não devam ser consideradas como campos de reflexão e ação inteiramente
apartados.
No entanto os adjetivos público
e privado (de empresa) não podem ser simplesmente considerados como variações
da mesma disciplina, pois no caso específico da Administração Pública, o adjetivo
se constitui na sua parte estruturante. Não é por outra razão nem por mero
efeito estilístico que, já no nome desta disciplina, público e privado ocupam o
lugar de substantivos.
De tudo o que foi tratado até
aqui, decorre, logicamente, a primazia do público sobre o privado.
O Estado e suas instituições são
as únicas instâncias que representam o todo em uma determinada sociedade, sendo
todas as demais organizações representantes de partes. A relação entre Estado e
sociedade civil é, portanto, uma relação entre desiguais, em que a última se
encontra subordinada ao primeiro. Isso não quer dizer que o Estado possa, a
todo o momento, e sob qualquer pretexto, intervir na sociedade civil, pois sua
primazia significa assimetria respaldada pelo Direito, e não arbitrariedade.
Como foi dito, a primazia do
público sobre o privado revela-se também na precedência que o público tem sobre
o privado. Em primeiro lugar, porque é o Estado, no exercício de sua função
legislativa, que irá determinar a esfera de atuação do poder público. Em
segundo lugar, porque é somente depois, por exclusão e residualmente, que será
determinada a esfera privada.
Assim, a primazia e precedência
do público sobre o privado terão efeitos diretos e decisivos sobre a lógica
interna que rege os sistemas normativos afetos a uma ou outra esfera: o Direito
Público e o Direito Privado.
Na sequência examinaremos mais
essa distinção – entre o Direito Público e o Direito Privado – que é
fundamental para compreendermos as especificidades da gestão das instituições públicas
em relação à gestão das organizações da sociedade civil, tenham elas finalidade
lucrativa ou não. Uma vez que a lei tenha delimitado o espaço público e, por
exclusão, definido também a extensão da esfera privada, os particulares que
nesta se encontrarem – sejam eles simples indivíduos, associações civis ou
empresas – poderão fazer tudo aquilo que a lei não proibir e deixar de fazer aquilo
que a lei não os obrigar. A essa liberdade e autonomia de ação da sociedade
civil convencionou-se chamar de liberdade negativa.
Você deve estar se
perguntando: Por que liberdade negativa?
Essa esfera de
liberdade não parece suficientemente ampla para ser vista positivamente?
Simplesmente porque essa esfera
de liberdade – de fato, bastante extensa – é claramente delimitada por dois
“não”:
·
Pode-se fazer o que a lei não proibir; e
·
Pode-se deixar de fazer o que a
lei não obrigar.
Essa é a regra geral que orienta
todo o direito privado – isto é, aquele que regula as relações entre os entes privados
na sociedade, como os direitos Civil, Comercial, Penal etc.
Essa regra elementar
não é, entretanto, aplicável ao Direito Público, que regula o funcionamento
interno do Estado e as suas relações externas com os agentes privados – como os
Direitos Constitucional e Administrativo. Você sabe por que não?
Exatamente porque, se gozasse de
liberdade negativa, o Estado, suas instituições e seus agentes poderiam se
tornar tirânicos com os cidadãos. Pois se para os indivíduos – que isoladamente
detêm pouca força – a liberdade negativa pouca ou nenhuma ameaça representa
para a coletividade, para o Estado – que detém o monopólio do uso legítimo da
força – a liberdade negativa equivaleria à tirania e ao completo cerceamento da
liberdade dos cidadãos.
Ficou mais claro agora por que razão o Estado e os agentes públicos não
gozam rigorosamente de liberdade de ação?
Por isso – e para assegurar que
por meio da ação estatal o interesse público seja atingido e a liberdade
individual assegurada – o princípio que irá orientar o Direito Público será o
de que o Estado:
·
Será obrigado a fazer exatamente
aquilo que a lei mandar; e
·
Só poderá fazer o que a lei
expressamente autorizar.
A compreensão da diferença entre
liberdade negativa e direito positivo é de fundamental importância para o
gestor público.
A liberdade negativa delimita a esfera de liberdade dos
indivíduos na sociedade civil, enquanto o direito positivo determina a esfera
de poder do Estado sobre a sociedade.
A capacidade de buscar e
encontrar “brechas na lei”, para poder fazer aquilo que a organização quer e
necessita, é característica valorizada e desejada nos administradores de organizações
e empresas privadas, que agem na esfera em que impera o princípio da liberdade
negativa. Porém, essa capacidade não é, de modo algum, aceitável para um gestor
público que terá todos os seus atos avaliados e julgados pela conformidade com
o que a lei obriga ou expressamente autoriza.
Preste bem atenção! Normativamente, a primazia do público
sobre o privado está fundamentada na contraposição entre interesse coletivo e
interesse individual. O bem comum não resulta da soma dos bens individuais,
razão pela qual os interesses individuais (privados) devem ser subordinados aos
interesses coletivos (o bem público).
Logo, a primazia e precedência
do público sobre o privado vão fazer com que as fronteiras entre um e outro
sejam sempre móveis: ora o Estado avançando sobre a esfera privada, ora recuando,
tal como no movimento pendular. Existem, porém, algumas atividades que
atualmente estão consagradas como exclusivas do poder público; outras em torno
das quais não existe qualquer consenso; e outras ainda que suscitam os mais
vivos embates.
Você saberia listar algumas das atividades exclusivas do poder público?
Pois bem, entre as ações
consensualmente consideradas como exclusivas do Estado, talvez você tenha
mencionado as atividades legislativas, judiciárias e das forças armadas e
policiais.
Não seria imaginável que a
elaboração de leis, que determinarão as obrigações e delimitarão a esfera de
liberdade de todos, fosse conferida a mãos privadas. Por isso, a elaboração legislativa
é normalmente conferida a corpos coletivos em que se encontram representados
todos os interesses da sociedade, de tal forma que as leis por eles produzidas
venham representar a vontade coletiva – ou, no mínimo, a vontade da maioria.
Tampouco seria admissível que a função de dirimir os conflitos entre as partes
fosse conferida a uma organização privada. Por isso, a atividade judiciária é
também conferida a tribunais, compostos por magistrados com formação jurídica
adequada e situados acima dos interesses das partes, garantindo a
imparcialidade.
Também não contestamos que a defesa das agressões externas deva caber às
forças armadas nacionais e que a segurança e manutenção da ordem pública internas
devam ser asseguradas pelas forças policiais. Por fim, tampouco questionamos
que a representação dos interesses de um Estado no exterior deva ser encargo de diplomatas
profissionais, mas se por uma razão qualquer um Estado não contar com
representação diplomática própria em outro país, é admitido que os seus
interesses sejam representados por terceiros. Mas a partir desses pontos, os
consensos começarão a desaparecer e as divergências, a emergir e se tornar mais
claras.
A coleta de impostos é
considerada, no Brasil, como uma atividade eminentemente pública e executada
por servidores públicos. No entanto, na Argentina chegou-se a considerar a possibilidade
de terceirização do recolhimento de impostos como forma de aumentar a
arrecadação para o Tesouro do País. No Brasil, o sistema penitenciário é
público e administrado por servidores públicos, mas sob o governo da primeira-ministra
Margaret Thatcher, no
Reino Unido, a administração penitenciária iria ser privatizada por meio de
licitações.
Há ainda outras atividades que
são consideradas de interesse público, mas que não devem ou necessitam ser
providas exclusivamente pelo poder público. Entre essas, se encontra a maior
parte dos serviços sociais, como os de educação – já referidos nesta Unidade –
e de saúde, que são oferecidos tanto por instituições públicas como privadas.
Nas sociedades capitalistas,
considera-se que as atividades produtivas sejam, eminentemente, atribuição dos
agentes privados. Em princípio, a decisão de produzir um determinado produto
para comercialização no mercado seria exclusiva de quem se propusesse a
produzi-lo e, como tal, independente do Estado, assim como também seria
privativa do consumidor a decisão de adquirir ou não um determinado produto
ofertado no mercado.
No entanto, considerações
orientadas pelo interesse coletivo acabariam levando o Estado a intervir também
nessa esfera tipicamente privada, acabando com a rígida delimitação das esferas
de atividade humana entre tipicamente públicas e tipicamente privadas.
Durante o século XX, até mais ou
menos a década de 1970, a expansão da ação do Estado sobre áreas até então
consideradas privativas da sociedade civil seria notável. Essa intervenção do Estado
iria se dar fundamentalmente sob três formas:
·
Regulação pública de relações
sociais até então consideradas exclusivas da esfera privada;
·
Prestação de serviços sociais; e
·
Produção de bens considerados
essenciais ou de interesse coletivo.
Vejamos, resumidamente, cada uma
delas.
A regulação das relações de trabalho entre empregadores e empregados pelo Estado seria, possivelmente,
a intervenção do Estado que maior impacto causaria nas sociedades ocidentais do
início do século XX, até então culturalmente orientadas pelo liberalismo. Essa
doutrina considerava que as relações econômicas, entre as quais se encontram as
relações de trabalho, situavam-se no âmbito exclusivamente privado.
Com
a organização do movimento operário e intensificação da ação sindical e das
lutas sociais na Europa, alimentadas pelas ideologias socialistas e comunistas
do século XIX, a rigidez liberal gradualmente abriria espaço à intervenção do
Estado, até o estabelecimento do que se convencionaria chamar de Estado de Bem-Estar
Social. Após a grave crise econômica de 1929 e o período de depressão que
seguiria, os Estados passariam também a intervir na regulação de outras esferas
das atividades econômicas, de forma a evitar outros períodos de crises
econômicas e sociais tão profundas.
Já a prestação de serviços sociais pelo
Estado seria, ainda, outro componente importante da agenda do Estado de Bem Estar
Social. Até então, os serviços sociais, hoje considerados de interesse público,
como saúde, educação e assistência social, eram prestados por organizações
privadas, geralmente, por instituições filantrópicas, confessionais ou laicas,
com a notável exceção da oferta de educação primária, já provida por escolas
públicas desde o século XIX. Ao longo do século XX, outros serviços sociais passariam
ainda a ser oferecidos pelo poder público, como transporte, habitação e lazer.
A intervenção direta do Estado
na produção de bens seria outro componente importante do avanço da esfera pública
sobre a privada, sobretudo em sociedades da periferia do sistema capitalista, que
começaram a industrializar-se tardiamente, como o Brasil.
Partindo do pressuposto de que
os capitais nacionais privados não eram suficientes para os investimentos
produtivos necessários à industrialização do País, e sendo esta considerada um
bem comum e única via de desenvolvimento nacional, o Estado brasileiro passou a
atuar como produtor de bens em áreas consideradas estratégicas, como
siderurgia, mineração, produção de motores, de energia e de combustíveis, além
do financiamento das atividades produtivas privadas. São exemplos disso a
criação da(o):
·
Companhia Siderúrgica Nacional
(CSN), em 1941;
·
Companhia Vale do Rio Doce
(CVRD), em 1942;
·
Fábrica Nacional de Motores
(FNM), em 1943;
·
Companhia Hidroelétrica do São
Francisco, em 1945;
·
Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico (BNDE), em 1952, posteriormente transformado em Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES); e
·
Petrobras, em 1953.
Em tempos recentes, a
participação do Estado na regulação das relações sociais, prestação de serviços
e produção de bens iria refluir, no Brasil e no mundo, como tratado na
disciplina Estado, Governo e
Mercado.
Para efeito desta disciplina, o
importante é estarmos conscientes de que a fronteira entre o público e o
privado é sempre flexível, mutável no tempo e no espaço, de acordo com o que
uma determinada coletividade nacional julga ser de interesse coletivo, ou não.
Conforme Rousseau (1987, p. 50) sintetizaria, no Contrato Social, a questão dos limites entre o
público e o privado: “[...] perguntar até onde se estendem os direitos respectivos
do soberano e dos cidadãos é perguntar até que ponto estes podem comprometer-se
consigo mesmos, cada um perante todos e todos perante cada um”.
AS PRERROGATIVAS DO PODER PÚBLICO SOBRE OS AGENTES PRIVADOS
Vimos, no tópico anterior, que
as instituições públicas gozam de diversas prerrogativas em relação aos agentes
privados, que derivam logicamente da assimetria existente entre Estado e sociedade
civil. De acordo com o Direito Constitucional, existe toda uma hierarquia de
prerrogativas, que, exercidas pelos agentes legalmente incumbidos, vão do poder
soberano, que tudo pode, ao poder limitado em diferentes graus.
O exercício do poder soberano
ocorre em momentos muito específicos, geralmente em períodos de elaboração
constitucional, quando são definidas as regras básicas que irão reger permanentemente
as relações entre os agentes privados entre si e entre estes e o Estado em uma
determinada sociedade. Uma vez elaborada e aprovada a constituição de um país,
a amplitude da capacidade de mudar aquela relação passa a ser reduzida.
No exercício do poder soberano,
os constituintes brasileiros que elaboraram a Constituição de 1988 previram
alguns mecanismos para a alteração das relações entre Estado e sociedade.
No Ato das Disposições
Transitórias, a Constituição de 1988 determinaria a realização de um plebiscito
para que os eleitores pudessem decidir sobre a forma de Estado e de governo sob
a qual desejariam viver: República ou Monarquia; presidencialismo ou parlamentarismo.
Em 1993, na data prevista pela Constituição, a maioria dos brasileiros acabaria
se manifestando pela manutenção da República e do regime presidencial vigentes
no País.
No entanto, nos regimes
democráticos contemporâneos, como o brasileiro, decisões por participação
popular direta têm mais valor simbólico do que importância e poder efetivos.
Constitucionalmente, plebiscitos
e referendos são mecanismos concebidos para a população decidir diretamente
sobre questões bem específicas e previamente delegadas pelo parlamento ao eleitorado,
sejam elas de ordem propriamente constitucional – como o plebiscito sobre a
forma de Estado e de governo, realizado em 1993 – ou simplesmente de ordem
legal - como o referendo sobre a Lei do Desarmamento, realizado em 2005.
Na verdade, tão ou mais
importante e frequentes que os mecanismos de democracia direta para alterar as
relações entre público e privado são as Emendas Constitucionais. Por meio
delas, os representantes do povo no Congresso Nacional podem quase tudo, exceto
pretender abolir:
·
A forma federativa de Estado;
·
O voto direito, secreto,
universal e periódico;
·
A separação dos Poderes; e
·
Os direitos e garantias
individuais.
As Propostas de Emenda
Constitucional (PECs) podem ser aprovadas por maioria qualificada, isto é, de
3/5 dos deputados federais e 3/5 dos senadores, em votações realizadas em dois
turnos em cada uma das casas do Congresso Nacional.
Para a elaboração e alteração
das Leis Complementares, previstas pela Constituição, é requerida a aprovação
da maioria absoluta dos representantes da Câmara dos Deputados e do Senado
Federal, ou seja, 50% mais um de todos os seus membros. Já a aprovação de Leis
Ordinárias requer apenas maioria simples, quer dizer, de 50% mais um dos presentes,
em cada casa, nas sessões com quórum (50% mais um de todos os representantes).
Aqui é importante destacarmos
que nos regimes democráticos, as mudanças que alteram fundamentalmente as relações
entre público e privado – aquelas que criam obrigações para os cidadãos – são
incumbência exclusiva do Poder Legislativo.
Este pode restituir ao povo que
elegeu os seus membros a prerrogativa de decidi-las diretamente, por meio de plebiscitos* ou referendos*, mas não poderá delegá-la ao
Poder Executivo.
Em nenhuma hipótese, os agentes
do governo podem impor obrigações e restrições aos cidadãos que já não estejam
previstas em lei. Excetuando as decisões direitas pelo voto popular – que é o poder
legislativo originário – que se dão sempre por maioria simples, as decisões
tomadas pelas instituições legislativas requerem maiorias diferenciadas
conforme o seu grau de importância, como detalhado no parágrafo anterior.
As prerrogativas de criar normas
infralegais – aquelas que derivam das leis existentes e não criam novas
obrigações para os particulares – são do Poder Executivo. O presidente da
República, os governadores de Estado e os prefeitos municipais têm o poder de
emitir Decretos, regulamentando as disposições legais.
Os Conselhos, criados por Lei,
podem normatizar por Resolução. E os
ministros e secretários de
Estado, por sua vez, podem exercer seu poder normativo com efeitos externos,
isto é, sobre a sociedade, por meio de Portarias. Até o fim da linha
hierárquica, o servidor público, na qualidade de agente do Estado, irá exercer
um conjunto de poderes com efeitos sociais, que serão objeto de análise detalhada
ainda neste trabalho.
Ao Estado são ainda garantidas
certas prerrogativas mesmo quando estabelece contratos com os agentes privados
– embora conceptualmente um contrato seja uma relação estabelecida entre iguais.
O Estado pode, por exemplo, alterar ou rescindir unilateralmente os seus
contratos, se assim requerer o interesse público. Em contrapartida, o poder
público fica obrigado a compensar o agente privado pelo prejuízo que a
alteração contratual imposta vier a lhe causar, resguardado o equilíbrio
financeiro da parte contratada.
O Estado pode agir unilateralmente porque ele – somente ele
– age no interesse público, atuando os demais agentes privados – lícita e
legalmente – na defesa dos seus interesses privados.
Por essa razão, os contratos
celebrados pelo Estado com os particulares são regidos pelo Direito
Administrativo. Na sociedade civil, os contratos estabelecidos entre partes
juridicamente iguais são regidos pelo Direito Civil e só podem ser alterados
mediante a vontade expressa de ambas as partes contratantes. E não poderia ser
diferente. Como cada qual defende, legitimamente, seus interesses privados,
nenhum contrato pode ser alterado ou rescindido unilateralmente.
O Estado tem ainda a
prerrogativa de interferir num dos direitos mais caros às sociedades liberais e
capitalistas, que é o direito à propriedade. O Estado pode, sem cometer
qualquer arbitrariedade, operar a transferência compulsória de um bem de um
indivíduo ou de uma empresa particular para o domínio público, em caráter
temporário ou permanente, conforme o caso, sempre que houver um motivo de
interesse público legalmente sustentado.
Essa intervenção do poder
público na propriedade privada é imposta de forma discricionária, mas sempre
com ônus para o Estado, que deve indenizar a pessoa – física ou jurídica – que
tiver o seu patrimônio expropriado.
A lei faculta ao Estado
desapropriar um particular quando houver:
·
Necessidade pública, isto é, quando a Administração Pública se defrontar com
situações de emergência que, para serem satisfatoriamente resolvidas, exigem a transferência
urgente de bens de terceiros para o seu domínio e uso imediatos.
·
Utilidade pública, quando a transferência de bens de terceiros para a Administração
for conveniente, embora não imprescindível, como no caso de expropriação de
terras, urbanas ou rurais, para a construção de vias públicas.
·
Interesse social, quando as circunstâncias impuserem a distribuição ou o
condicionamento da propriedade para o seu melhor aproveitamento, utilização ou produtividade
em benefício da coletividade ou de categorias sociais que forem objeto do
amparo específico do poder público, como nos casos de reforma agrária.
Como podemos observar, as
prerrogativas do Estado são muitas, mas todas exercidas dentro da estrita
legalidade e sempre em benefício público. Em caso contrário, não caberia falar
de prerrogativas, mas de arbítrio, que seria o abuso do poder público.
Além disso, na arquitetura
institucional dos Estados democráticos contemporâneos não se encontram previstas
apenas prerrogativas para a ação do Estado, mas também deveres para este e
direitos para o cidadão. É dentro dessa perspectiva que são concebidos os serviços
públicos. Observe, no Quadro abaixo, uma das possíveis formas de classificarmos
os serviços públicos.
Em um Estado de Direito, os
serviços prestados pela Administração Pública decorrem das funções
constitucionais e legais do poder público, não sendo nunca serviços
voluntariamente ofertados por decisão autocrática dos governantes ou por
iniciativa dos funcionários do Estado. Na verdade, a prestação voluntária de serviços é proibida na
Administração Pública e aos servidores públicos, a não ser nos casos previstos
por lei, e restrita à esfera privada.
É norma do Direito Público, derivada da assimetria entre
Estado e sociedade civil, que ao Estado só cabe fazer aquilo que a lei mandar,
ou expressamente autorizar. Portanto, somente à lei caberá determinar quais
serviços serão prestados e quem terá ou não acesso a eles. Assim, o princípio
contemporâneo de cidadania determina que qualquer serviço oferecido pelo Estado
– seja ele gratuito ou pago – deva ser conscientemente executado pelo prestador
como um dever e usufruído e percebido pelo usuário como um direito.
Nas sociedades com pouca experiência
democrática – e, consequentemente, limitada cultura de cidadania – confunde-se,
com frequência, gratuidade com caridade ou filantropia, assim como serviços
públicos com serviços gratuitos e serviços pagos com serviços privados. Essas
noções não só são equivocadas como são conflitantes com o conceito de cidadania
e o seu desenvolvimento na cultura política de uma sociedade, pois tanto o
setor privado pode oferecer serviços gratuitos, sem que isso os torne serviços públicos,
quanto o setor público cobrar pelos serviços que oferece, sem que isso faça
deles serviços privados. Por isso é necessário esclarecer devidamente essas
diferenças.
O funcionamento dos serviços
privados e pagos é o mais facilmente compreensível: são pagos por quem deles
usufrui para aqueles que os prestam – e que arcam com os seus custos operacionais.
Assim funcionam os consultórios médicos particulares, em que a paciente paga ao
médico; as escolas privadas que não recebem nenhum subsídio, em que os pais dos
alunos pagam pela educação que os seus filhos recebem; todas as empresas
privadas de prestação de serviços, em que o cliente paga ao fornecedor.
Já o funcionamento dos serviços
gratuitos não é tão fácil de ser compreendido, pois nem sempre fica claro para
o usuário quem arca com os seus custos operacionais: se o Estado por meio de impostos,
como no caso do fornecimento de título de eleitor; se o setor privado, como no
caso dos serviços assistenciais prestados por instituições particulares de
caridade; se ambos, como é o caso de diversas Organizações Não Governamentais
(ONGs), que recebem dinheiro tanto do Estado quanto do setor privado para custear
os seus serviços; ou ainda, se por uma composição de recursos advindos do
Tesouro e de contribuições sociais, como os que compõem o orçamento da
Seguridade Social, que é uma das fontes de financiamento do
Sistema Único de Saúde (SUS).
Existem ainda serviços que são
parcialmente pagos pelo usuário e oferecidos pelo setor público, que arca com
os demais custos não cobertos pelas taxas cobradas, como os exames vestibulares
e as matrículas nas universidades públicas. E existem também serviços públicos
inteiramente pagos, como os de inspeção feitos pelas diferentes agências
reguladoras nas empresas e instituições reguladas pelo Estado.
Então, podemos afirmar que não existe qualquer relação entre gratuidade
e serviços públicos?
Se respondeu que sim, acertou,
pois temos serviços privados que podem ser gratuitos e serviços públicos que
podem ser pagos.
Logo, o que faz com que o poder
público decida oferecer um determinado serviço gratuitamente é a conveniência
do poder público ou a necessidade social.
Por exemplo, é conveniente ao Estado
oferecer gratuitamente iluminação pública, já que seria praticamente impossível
cobrar com justiça dos usuários a iluminação que beneficia a cada
um. O mesmo vale para os serviços de segurança pública e defesa de fronteiras.
Já como bom exemplo de gratuidade por necessidade social figura o Programa Universidade
para Todos (ProUni), do Ministério da Educação. Aos estudantes cuja renda
familiar per capita fique abaixo de uma determinada quantia, considerada insuficiente
para arcar com os custos de uma mensalidade em um curso superior oferecido por instituições
privadas, são oferecidas bolsas de estudo integrais – portanto, há gratuidade;
e aos que têm renda em um determinado patamar que lhes permita arcar com parte
dos custos das mensalidades, são oferecidas bolsas parciais.
A distinção entre o público e o
privado, a delimitação da fronteira entre uma e outra esfera e a extensão dos
poderes e das prerrogativas do poder público sobre os agentes privados são derivadas
da contradição existente entre interesse privado e interesse público nas
sociedades contemporâneas. Se esses interesses fossem coincidentes, como foram
na Pré-História da humanidade, e ainda são em algumas sociedades tribais
existentes pelo mundo, inclusive no Brasil, não haveria Estado, Administração
Pública, Direito Público nem Direito Privado.
Até aqui, examinamos as complexas relações que se estabelecem entre
público e privado nas sociedades capitalistas contemporâneas. A partir de
agora, para aprofundar o conhecimento do funcionamento da esfera pública,
faz-se necessário analisarmos em detalhes a relação que se estabelece no
interior do Estado entre poder público e servidor público.
Vamos lá?
O ESTADO E O SERVIDOR PÚBLICO
A relação que o Estado
estabelece com os seus servidores – seja na esfera federal, estadual ou
municipal – é de natureza inteiramente distinta da relação que se estabelece
entre empregadores e empregados no setor privado. Para o gestor público, conhecer
essa especificidade é fundamental, e a melhor maneira de explicitá-la é
contrastando as relações de trabalho na esfera pública com as da esfera
privada. Como vimos ao comparar as instituições públicas com as organizações
privadas, nestas, o empregador – que tanto pode ser um indivíduo, quanto uma empresa
capitalista ou uma associação sem fins lucrativos -estabelecerá autonomamente
os fins que irá perseguir, e para pôr sua organização em funcionamento,
contratará livremente no mercado de trabalho os indivíduos que bem entender, atribuindo-lhes
as funções que lhe aprouver. Respeitados os limites impostos pela lei,
empregados e empregadores encontram-se na plenitude do exercício da sua
liberdade negativa.
Agora para compreendermos melhor a amplitude da liberdade negativa
exercida pelos agentes privados e, por oposição, os limites impostos ao Estado
na gestão das suas instituições e no trato com os seus servidores, imaginemos
uma situação no limite do absurdo.
Suponha que um empresário
qualquer decida lançar no mercado um novo produto, como água de torneira
engarrafada. Se observar e cumprir as normas estabelecidas pelos poderes
públicos competentes, como as da Agência de Vigilância Sanitária e da Secretaria
Estadual de Saúde, esse empresário poderá, legítima e legalmente, lançar-se no
seu empreendimento. Para tanto, ele poderá contratar quem quiser.
Desde que respeite as
determinações da legislação trabalhista, esse empresário poderá, se quiser,
empregar apenas mulheres negras, idosas e portadoras de deficiência física, não
necessitando justificar esse critério perante ninguém, por se tratar de uma
ação afirmativa que não contraria a lei. Poderá ainda organizar a produção e
comercialização do seu produto da forma que julgar mais conveniente, criando um
departamento comercial voltado para o mercado da região do semiárido nordestino
e outro departamento de exportação voltado para os países do Saara. Se nesses
mercados o empresário imaginário encontrar compradores para o seu produto,
auferirá lucros, sendo o seu empreendimento revestido de pleno sucesso. Se após
algum tempo, ele quiser se desfazer do seu empreendimento e mudar de ramo de
atividades, ninguém poderá impedi-lo. E se ao contrário, após ter acumulado prejuízos
e dilapidado o seu patrimônio pessoal, resolver encerrar o empreendimento,
poderá fazê-lo livremente, demitindo todos os seus empregados mediante o
pagamento do que a lei exigir.
Você pode estar se perguntando: o que queremos enfatizar com
este exemplo?
Sobretudo que a liberdade de
empreendimento, de contratação e de demissão de empregados desse empresário imaginário
é uma prerrogativa exclusiva do setor privado e inexistente no setor público.
Tipicamente, no setor privado, empregadores e empregados estabelecem entre si
relações contratuais no pleno exercício de sua liberdade negativa. No setor
público, a relação que se estabelece entre Estado e servidor é a de representação,
não sendo o servidor outra coisa senão agente do poder público.
Neste ponto, você irá provavelmente perguntar: o que quer dizer
servidor como representante do Estado e agente do poder público?
São agentes do poder público
todas aquelas pessoas físicas incumbidas de exercer as funções administrativas
que cabem ao Estado e que ocupam cargos ou funções na Administração Pública.
E o que vêm a ser cargos?
Os cargos ou funções pertencem
ao Estado, e não aos agentes que os exercem, razão pela qual o Estado pode,
discricionariamente, suprimi-los ou alterá-los. Os cargos são os lugares
criados por lei na estrutura da Administração Pública para serem providos por agentes,
que exercerão suas funções na forma da lei. É o cargo que integra o órgão,
enquanto o agente, como pessoa física, o ocupa na condição de titular. A função
é o encargo legalmente atribuído aos órgãos, cargos e seus agentes.
Portanto, órgãos, cargos e
funções, existentes na Administração Pública, são criações legais que se
encarnam nos agentes, que são pessoas físicas. Na estruturação do serviço
público, o Estado cria cargos e funções, institui classes e carreiras, faz provimentos
e lotações, estabelece vencimentos e vantagens, e delimita deveres e direitos
para os servidores:
Cargo público é o lugar
instituído na organização do serviço público, com denominação própria, atribuições
e responsabilidades específicas e estipêndio correspondente, para ser provido e
exercido por um titular, na forma estabelecida em lei. Função é a atribuição ou
o conjunto de atribuições que a administração confere a cada categoria
profissional ou comete individualmente a determinados servidores para a
execução de serviços eventuais [...].
Os cargos são apenas os lugares
criados no órgão para serem providos por agentes que exercerão as suas funções
na forma legal.
O cargo é lotado no órgão e o
agente é investido no cargo. Por aí, se vê que o cargo integra o órgão, ao
passo que o agente, como ser humano, unicamente titulariza o cargo para servir
ao órgão. Órgão, função e cargo são criações abstratas da lei; agente é a
pessoa humana, real, que infunde vida, vontade e ação a essas abstrações legais
(MEIRELLES, 2008).
Assim como na Administração
Privada, aos diferentes cargos são atribuídas diferentes funções, e o acesso a
esses cargos se dá por diferentes formas de investidura. Estas derivam da
natureza distinta das funções públicas a serem exercidas por cada agente.
A investidura política dá-se por
eleição. No Brasil, esta é a forma de investidura para todos os cargos
políticos no Poder Legislativo, ou seja, para os cargos de representação
popular, e não para os postos administrativos, e para os mais altos cargos do Poder
Executivo em suas diferentes esferas – federal, estadual e municipal. Nas
democracias, os cargos de maior poder têm essa forma de investidura, que pode
ser por eleição direta ou indireta.
No Brasil, a partir da vigência
da Constituição de 1988, todas as eleições passaram a ser diretas, isto é, os
cidadãos escolhem diretamente, através do voto, os ocupantes dos cargos de
presidente, governador, prefeito, senador, deputado federal, deputado estadual ou
distrital e vereador, cujos mandatos são temporários e rigidamente
determinados.
No entanto, existem democracias
em que o acesso a alguns cargos ocorre por eleição indireta, ou seja, por
intermédio de um colégio eleitoral no qual os eleitores não são os cidadãos,
mas seus representantes, como nas eleições para o Senado na França e a escolha
dos primeiros-ministros nos regimes parlamentaristas. Em outras democracias, há
ainda alguns cargos de senador vitalício, como na Itália, no Chile e no Peru.
Aos agentes políticos do Poder
Executivo cabe, legitimamente, a definição das diretrizes e das políticas de
governo a serem observadas por toda a administração Pública. Os agentes eleitos,
assim como os agentes por eles nomeados nos primeiro e segundo escalões da
Administração Pública, estão democrática e legitimamente investidos do poder de
reorientar a ação do poder público para a direção que lhes aprouver,
respeitados os limites das leis e da Constituição. Aos escalões inferiores da
Administração, cabe a observância das diretrizes e orientações de governo, não devendo
opor resistência a estas orientações.
Como cidadão, o funcionário público, em qualquer nível, pode votar
em quem bem entender nas eleições, mas, na condição de agente do poder público,
ele deverá cumprir com exação as determinações superiores, sempre – é claro –
que se essas forem legais.
A maioria dos agentes, investida
pelas demais formas, não tem seu exercício nos cargos delimitado temporalmente,
sendo a forma mais comum de investidura originária o concurso público.
Os agentes assim investidos,
após o cumprimento e aprovação no estágio probatório, tornam-se agentes
efetivos, adquirindo estabilidade no serviço público.
Vulgarmente
considerada como um privilégio do serviço público, já que inexistente no setor
privado, a estabilidade é, na verdade, uma forma de proteção do servidor de possíveis
pressões de governantes temporários e de compensação de alguns deveres e
restrições que recaem exclusivamente sobre os servidores públicos, e não sobre os
empregados do setor privado.
Além de estabilidade, a
investidura em alguns cargos é vitalícia, como nos casos de juízes, promotores
e procuradores. Mais uma vez, não se trata aqui de privilégio, mas de garantia
de independência dos ocupantes dessas funções de pressões oriundas dos agentes
políticos, que poderiam comprometer a imparcialidade com que devem desempenhar
suas funções.
Existe ainda a investidura por
comissão, que é sempre de natureza transitória, para provimento de cargos de
direção, chefia e assessoramento. Os agentes investidos em cargo em comissão podem
ser exonerados a qualquer momento, já que são cargos de livre nomeação e da
confiança dos agentes públicos hierarquicamente superiores.
Diferentemente do setor privado,
em que os cargos são criados e as funções definidas discricionariamente pelo
empregador, assim como a admissão e demissão dos indivíduos se dá em bases estritamente
contratuais, no setor público, os cargos e suas formas de investidura serão
sempre criteriosamente determinados por lei tendo em vista resguardar o
interesse público.
Outra grande diferença entre os
cargos no setor público e os empregos na iniciativa privada é que o Estado
confere aos seus servidores efetivos uma série de garantias inexistentes no
mercado – como a estabilidade e a irredutibilidade dos vencimentos. Apesar dessas
garantias, o poder público se reserva algumas prerrogativas, sem as quais não
poderia ajustar a Administração Pública às mudanças da sociedade e dos
interesses coletivos ao longo do tempo.
Por exemplo, se por um lado o
Estado não pode demitir um servidor estável, por outro pode transformar ou
extinguir o cargo em que ele se encontra investido. No caso de extinção, o
servidor será posto em disponibilidade, recebendo remuneração proporcional ao
seu tempo de serviço, sem trabalhar, até que a Administração o reaproveite em
outro cargo.
Na reforma do Estado, iniciada
em 1995, no plano federal, uma série de cargos foi extinta da estrutura
administrativa, passando os seus agentes efetivos a ocuparem cargos em
extinção, sem perspectivas de ascensão funcional e salarial.
Naquele momento, os mentores da
reforma administrativa julgaram que os cargos extintos – como os de motoristas,
ascensoristas, estatísticos, arquitetos e tantos outros – não eram típicos de
Estado, não devendo, por isso, mais existirem enquanto cargos públicos.
Essa decisão discricionária não
foi, entretanto, arbitrária, posto que aprovada pelo Poder Legislativo por meio
de Emenda à Constituição.
Em outros casos menos drásticos,
os servidores podem ainda ser transferidos ex officio – isto é, compulsoriamente, no
interesse da Administração Pública, de uma localidade para outra – ou ter sua
lotação transferida de um órgão público para outro, se assim for do interesse
da Administração.
Embora o serviço público e o
emprego privado sejam de naturezas inteiramente distintas, como demonstrado até
aqui, os direitos e benefícios usufruídos pelos servidores públicos e pelos empregados
no setor privado passariam, com o tempo, a ser cada vez mais convergentes.
Vejamos algumas situações para
ilustrar isso:
·
Há algumas décadas, apenas os
empregados do setor privado tinham direito a receber um 13º salário anual.
Atualmente, benefício
equivalente é concedido aos servidores públicos federais sob o nome de
gratificação natalina.
·
Até bem pouco tempo atrás, os
servidores públicos estáveis da União podiam incorporar permanentemente, e em
cascata, aos seus vencimentos a remuneração auferida por terem ocupado cargos
em comissão por um determinado tempo, privilégio desconhecido no setor privado
e excluído, em 1997, da lei que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores
públicos civis da União.
Apesar dessas convergências,
para uns e outros seguem existindo ordenamentos jurídicos distintos: o Regime
Jurídico Único (RJU), para os servidores da União, e uma série de outros
regimes jurídicos, não regidos por contrato, que dispõe sobre as relações dos Estados
e dos municípios com os seus servidores titulares de cargos públicos; e a
Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), para os trabalhadores do setor privado
e ocupantes de empregos públicos. Vamos examinar algumas das principais
diferenças entre o RJU e a CLT.
A Constituição e o RJU garantem
ao servidor federal que tenha passado pelo período de estágio probatório
estabilidade na função pública, obrigando-o a ela se dedicar integralmente e
lhe impondo limites de remuneração. Por outro lado, a CLT não garante
estabilidade ao trabalhador no emprego, mas lhe assegura um Fundo de Garantia por
Tempo de Serviço (FGTS), alimentado por contribuição patronal e a ser sacado
pelo trabalhador no momento da sua aposentadoria, em caso de demissão sem justa
causa e em alguns outros casos especiais previstos em lei, e não lhe impõe
limites de remuneração.
Sobre a adequação e justiça das
diferenças entre o RJU e a CLT, não existe qualquer consenso, sendo elas
frequentemente questionadas pelos mais variados segmentos da sociedade: imprensa,
associações profissionais, sindicatos patronais, de trabalhadores e servidores
e pelos sucessivos governos.
Independentemente das
divergências, o que importa aqui precisar é que diferenças jurídicas,
conceituais e funcionalmente sustentadas não devem ser confundidas com
privilégios. Estes podem e devem ser combatidos e eliminados, uma vez que
conflitam com o princípio básico e fundamental de uma República, que é o da
igualdade entre os seus cidadãos. Já as diferenças de direitos justificam-se plenamente,
sem contradizer os princípios republicanos, sempre e quando forem embasadas em
diferenças funcionais, legal e legitimamente estabelecidas pelo poder público,
porque consideradas necessárias à defesa e consecução do interesse público.
Não fosse assim, não haveria qualquer sentido em delimitar conceitual
e legalmente os espaços e os limites entre o público e o privado, como foi
feito ao longo deste trabalho.
Fonte: apostila de especialização em Gestão Pública Municipal.
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