sexta-feira, 5 de julho de 2013

O PÚBLICO E O PRIVADO EM ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA



INTRODUÇÃO



A extensão dos poderes do Estado e o papel da Administração Pública na sociedade são temas que suscitam grandes controvérsias e em torno dos quais não se pode, rigorosamente, falar de consenso ou da existência de uma posição dominante. Por se tratar de questões que emanam do âmago da reflexão e da prática políticas, as formulações que venham a ser produzidas a respeito carregarão, sempre, um forte viés ideológico, alimentadas por diferentes visões de mundo, concepções e valores dos quais todos os indivíduos das sociedades são portadores.
O reconhecimento desses vieses não nos deve desencorajar a enfrentar a questão nem tampouco nos autoriza a fazer qualquer tipo de formulação, numa espécie de “vale-tudo”. Ao longo de séculos, a civilização ocidental veio recorrentemente colocando-se questões relativas ao Estado, ao exercício do poder e às relações entre Estado e sociedade, e essa reflexão socialmente acumulada deve nos servir de base para refletirmos sobre o papel dos gestores públicos na administração do Estado brasileiro em todas as suas esferas: municipais, estaduais e federal.
Da tradição ocidental deriva uma dicotomia que remonta ao Direito Romano, que ganharia novos contornos com o desenvolvimento do Estado moderno, tal como o conhecemos contemporaneamente, e que é central para o desenvolvimento do nosso tema: a dicotomia entre público e privado, da qual todos os outros temas a serem aqui tratados decorrem logicamente.

A DICOTOMIA PÚBLICO/PRIVADO


Toda dicotomia carrega um elevado grau de arbitrariedade na medida em que pretende dar conta de todo o universo de possibilidades. No caso da dicotomia público/privado, significa que aquilo que está na esfera pública deve necessariamente estar fora da esfera privada, e tudo o que não se situar na esfera pública deve estar obrigatoriamente contido na esfera privada. De acordo com essa lógica de ferro, um termo exclui necessariamente o outro, e ambos recobrem a totalidade do existente e do imaginável. No entanto, no mundo real, as definições nem sempre são tão claras quanto no mundo dos conceitos.
Certamente você deve estar associando, sem dificuldade, o Estado à esfera pública e a empresa capitalista à esfera privada. No entanto, à medida que vamos nos distanciando dos casos extremos, a classificação vai se tornando menos óbvia.

Por exemplo, em que esfera você situaria a empresa pública? E os partidos políticos? E as Organizações Não Governamentais(ONGs)? Antes de respondermos a essas perguntas, vamos
examinar os componentes de cada um dos termos, tentando identificar o que é fundamental em um e em outro?

A definição da esfera pública é uma construção, ao mesmo tempo, intelectual e coletiva. Isso quer dizer que na substância ou na materialidade das coisas não há nada que nos permita situar, inequivocamente, um bem ou um serviço nela. A construção da esfera pública é, na verdade, resultado de uma convenção social específica. Assim sendo, irá integrar a esfera pública aquilo que toda coletividade, e não apenas uma parte dela, pactuar, explícita ou implicitamente, ser de interesse comum.

Tudo o que a coletividade chamada povo convencionar, em um determinado momento de sua história, ser de interesse ou de propriedade comum, integrará a esfera pública, ficando todo o restante adstrito à esfera privada.

Disso se conclui logicamente que não há nada que seja intrinsecamente público nem intrinsecamente privado, já que a definição de ambos resulta de convenção coletiva.
Definidos os conceitos desta forma, você logo irá perceber que o público tem precedência sobre o privado, pois a delimitação da esfera pública irá anteceder, temporal e logicamente, a circunscrição da esfera privada. Isso quer dizer que o espaço público, e tudo o que nele se inserir, será sempre explicitado positivamente, ao passo que o espaço privado será delimitado de forma residual, cabendo nele tudo aquilo que ficar de fora da esfera pública.
A construção da esfera pública será também sempre historicamente delimitada. Aquilo que em um determinado momento histórico é considerado como indubitavelmente público pode não o ser em outro. Para explicitarmos esse ponto relevante, vamos ver alguns exemplos.

Exemplo 1

Contemporaneamente, consideramos que a defesa da coletividade das agressões externas, um bem claramente público, é encargo de uma instituição igualmente pública – o exército nacional, ou mais genericamente, as forças armadas nacionais, regulares e profissionais. No entanto, nem sempre foi assim. Durante a maior parte da história do Ocidente, essa função foi delegada a exércitos de mercenários; portanto, a grupos privados contratados pontualmente pelos governantes para a defesa dos seus territórios e populações.

Exemplo 2

A coleta de impostos é, hoje, considerada uma função eminentemente pública, que deve ser executada por agentes públicos. No entanto, durante a Idade Média, os impostos eram cobrados por particulares daqueles que utilizavam as estradas ou pontes situadas em terras sob o seu domínio.

Exemplo 3

Nas sociedades ocidentais contemporâneas – sejam elas repúblicas, como o Brasil e Portugal, ou monarquias constitucionais, como o Reino Unido e a Espanha –, o patrimônio e o orçamento públicos estão inteiramente separados do patrimônio e do rendimento dos governantes.
No entanto, antes da formação do Estado moderno, essa separação não existia, assim como continua não existindo em outras localidades como o Sultanato de Brunei, na Ásia, onde o patrimônio do Estado é contabilizado como de propriedade do sultão, o que faz do monarca de tão diminuto país o indivíduo mais rico do mundo.


Ficou mais claro agora?

Pois bem, a clara separação entre esfera pública e esfera privada é a marca distintiva das sociedades capitalistas e democráticas contemporâneas em relação às demais. Dessa separação fundamental decorrem todas as outras diferenciações relevantes no interior dessas sociedades, como a existente entre um Direito Público e um Direito Privado; entre Estado e sociedade civil; e entre poderes do Estado e direitos do cidadão. Outra diferença importante entre essas sociedades e as demais encontra-se na forma de administrar o Estado.
De acordo com o sociólogo alemão Max Weber, nas sociedades tradicionais – ou seja, antes que o capitalismo tivesse se desenvolvido plenamente nas sociedades ocidentais – predominava a administração patrimonial, caracterizada por uma forma de gestão dos negócios públicos como se estes fossem assuntos privados dos governantes.
Seria apenas com o desenvolvimento do capitalismo, com a formação do Estado moderno que o acompanharia e, finalmente, com a democratização dos Estados liberais que iria se desenvolver e se impor a administração burocrática, caracterizada por uma série de procedimentos administrativos, baseados na legalidade dos atos, na impessoalidade das decisões, no profissionalismo dos agentes públicos e na previsibilidade da ação estatal. Essa nova forma de administração foi estudada à exaustão por Weber.
Na esfera pública, os indivíduos são sempre concebidos como cidadãos, seja na posição de agentes do poder público, isto é, de servidores do Estado, seja na condição de simples usuários dos serviços públicos ou sujeitos submetidos às leis e normas impostas pelo Estado.
Já na esfera privada, os indivíduos são concebidos como pessoas físicas à procura da satisfação de seus interesses particulares, podendo se associar e constituir pessoas jurídicas com a finalidade de perseguir os mais diferentes objetivos – econômicos, políticos, religiosos, culturais etc. Mas, preste bem atenção: a personalidade coletiva resultante dessa associação segue, no entanto, sendo privada, e não se confunde, em momento nenhum, com a associação e coletividade públicas.

Mas, por que certas associações têm caráter público e outras privado? Para responder a essa pergunta, vamos analisar, a seguir, a diferença entre organização e instituição, que é fundamental para a devida compreensão das diferenças existentes entre esfera pública e esfera privada nas sociedades contemporâneas.

Chamamos de organização as associações do setor privado. Sua natureza, características e dinâmica foram, e são, exaustivamente estudadas pela teoria das organizações, disciplina central da administração de empresas.

Que características são essas?


A principal delas é a de que as organizações possuem
missão* e objetivos* que são auto atribuídos pelos seus membros. Nada obriga uma organização a continuar perseguindo os mesmos objetivos – e nem mesmo a continuar existindo – a não ser a vontade dos seus próprios membros. Estes possuem inteira autonomia – respeitados os limites e imposições legais – para definir e redefinir a sua missão, estabelecer e modificar os seus objetivos, decidir por sua expansão ou retração, diversificação e reorientação de atividades ou mesmo pela sua completa dissolução.
Essas características das organizações privadas, existentes na sociedade civil, não encontram qualquer paralelo nas organizações estatais, que, por serem instituídas pelo Estado para desempenhar funções de interesse público, são mais frequentemente chamadas de instituições. Já as organizações públicas encontram-se subordinadas ao Estado e têm sua missão e seus objetivos determinados legalmente e não autonomamente, como nas organizações privadas.
Isso, no entanto, não quer dizer que organizações públicas não possam gozar de certa autonomia. Por exemplo, na Administração Pública brasileira, os órgãos que integram a administração indireta, como autarquias e fundações, estão legalmente investidos de autonomia patrimonial, financeira e administrativa em relação aos órgãos centrais do governo, aos quais se encontram formalmente vinculados. Mesmo os órgãos que compõem a administração direta federal possuem a prerrogativa de planejar as suas atividades e estabelecer suas metas anuais. No entanto, essa autonomia nunca será mais que relativa. Acabamos de mencionar que as organizações do Estado podem ser classificadas em duas categorias: as que compõem a Administração direta; e as que integram a Administração indireta.
No Quadro abaixo podemos melhor visualizar as diferenças entre essas duas categorias de Instituições Públicas.





As organizações que integram a Administração indireta são de diferentes tipos. No Quadro abaixo você encontrará uma breve descrição e alguns exemplos dos tipos de organizações da Administração indireta.




Contrariamente às organizações – que são auto referenciadas, tendo interesses próprios e objetivos variáveis com o tempo –, as instituições têm objetivos permanentes a serem perseguidos em favor de toda a coletividade e não dos membros que a integram.
As organizações agem e mudam conforme a lógica e dinâmica do mercado, seja para sobreviver e se adaptar às novas condições de concorrência, seja para dessas tirar o maior proveito privado. Já as instituições não agem para sobreviver ou se expandir, aproveitando as condições de mercado, mas para influenciar, regular ou mesmo substituir o mercado. Para evidenciar as funções das organizações, veja a seguir alguns exemplos.

Exemplo 4

As instituições públicas de ensino atuam em uma área constitucionalmente aberta à iniciativa privada. Sua existência em um mercado concorrencial, como o educacional, por exemplo, só se justifica se:

·         Influenciar positivamente a qualidade da educação em geral, por meio da oferta de um ensino público de qualidade elevada, de forma a levar o setor privado a ofertar um serviço com qualidade equivalente a fim de poder concorrer com o setor público – como no caso da educação superior; ou
·         Garantir o acesso de toda população a um serviço considerado essencial e obrigatório, cuja universalização não seria alcançada por meio do mercado – como é o caso da educação básica pública e gratuita.

Exemplo 5

As agências regulatórias, que têm por finalidade regular diretamente as condições de concorrência e de oferta de serviços em um determinado mercado, visando o benefício de toda a coletividade.

Exemplo 6

As organizações que exercem suas funções de forma monopolista, como:
·         A Casa da Moeda, encarregada de emitir o meio circulante;
·         O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), encarregado da produção de estatísticas oficiais;
·         A Polícia Federal e polícias civis dos Estados, a quem cabe a investigação de crimes e ilícitos; e
·         Os ministérios públicos, federal e dos Estados, incumbidos de propor ações penais.
Apesar das diferenças que podemos identificar entre as organizações privadas e as instituições públicas, entre ambas existe uma área de diálogo e de influências mútuas, que é precisamente a de gestão organizacional.
Observe que da mesma forma que a administração burocrática surgiria no seio do Estado como forma de organização, estruturação e gestão das atividades públicas e posteriormente iria ser adotada pelas grandes organizações privadas, como sindicatos, partidos políticos e empresas capitalistas, muitas das inovações organizacionais e de gestão ocorridas no interior das empresas privadas e sistematizadas pela teoria das organizações iriam ser adotadas pela Administração Pública.
Entre a administração de empresas e a administração pública existe, no mínimo, o substantivo administração em comum, o que indica que ambas não devam ser consideradas como campos de reflexão e ação inteiramente apartados.
No entanto os adjetivos público e privado (de empresa) não podem ser simplesmente considerados como variações da mesma disciplina, pois no caso específico da Administração Pública, o adjetivo se constitui na sua parte estruturante. Não é por outra razão nem por mero efeito estilístico que, já no nome desta disciplina, público e privado ocupam o lugar de substantivos.
De tudo o que foi tratado até aqui, decorre, logicamente, a primazia do público sobre o privado.
O Estado e suas instituições são as únicas instâncias que representam o todo em uma determinada sociedade, sendo todas as demais organizações representantes de partes. A relação entre Estado e sociedade civil é, portanto, uma relação entre desiguais, em que a última se encontra subordinada ao primeiro. Isso não quer dizer que o Estado possa, a todo o momento, e sob qualquer pretexto, intervir na sociedade civil, pois sua primazia significa assimetria respaldada pelo Direito, e não arbitrariedade.
Como foi dito, a primazia do público sobre o privado revela-se também na precedência que o público tem sobre o privado. Em primeiro lugar, porque é o Estado, no exercício de sua função legislativa, que irá determinar a esfera de atuação do poder público. Em segundo lugar, porque é somente depois, por exclusão e residualmente, que será determinada a esfera privada.
Assim, a primazia e precedência do público sobre o privado terão efeitos diretos e decisivos sobre a lógica interna que rege os sistemas normativos afetos a uma ou outra esfera: o Direito Público e o Direito Privado.
Na sequência examinaremos mais essa distinção – entre o Direito Público e o Direito Privado – que é fundamental para compreendermos as especificidades da gestão das instituições públicas em relação à gestão das organizações da sociedade civil, tenham elas finalidade lucrativa ou não. Uma vez que a lei tenha delimitado o espaço público e, por exclusão, definido também a extensão da esfera privada, os particulares que nesta se encontrarem – sejam eles simples indivíduos, associações civis ou empresas – poderão fazer tudo aquilo que a lei não proibir e deixar de fazer aquilo que a lei não os obrigar. A essa liberdade e autonomia de ação da sociedade civil convencionou-se chamar de liberdade negativa.

Você deve estar se perguntando: Por que liberdade negativa?
Essa esfera de liberdade não parece suficientemente ampla para ser vista positivamente?

Simplesmente porque essa esfera de liberdade – de fato, bastante extensa – é claramente delimitada por dois “não”:

·         Pode-se fazer o que a lei não proibir; e
·         Pode-se deixar de fazer o que a lei não obrigar.

Essa é a regra geral que orienta todo o direito privado – isto é, aquele que regula as relações entre os entes privados na sociedade, como os direitos Civil, Comercial, Penal etc.

Essa regra elementar não é, entretanto, aplicável ao Direito Público, que regula o funcionamento interno do Estado e as suas relações externas com os agentes privados – como os Direitos Constitucional e Administrativo. Você sabe por que não?

Exatamente porque, se gozasse de liberdade negativa, o Estado, suas instituições e seus agentes poderiam se tornar tirânicos com os cidadãos. Pois se para os indivíduos – que isoladamente detêm pouca força – a liberdade negativa pouca ou nenhuma ameaça representa para a coletividade, para o Estado – que detém o monopólio do uso legítimo da força – a liberdade negativa equivaleria à tirania e ao completo cerceamento da liberdade dos cidadãos.

Ficou mais claro agora por que razão o Estado e os agentes públicos não gozam rigorosamente de liberdade de ação?

Por isso – e para assegurar que por meio da ação estatal o interesse público seja atingido e a liberdade individual assegurada – o princípio que irá orientar o Direito Público será o de que o Estado:

·         Será obrigado a fazer exatamente aquilo que a lei mandar; e
·         Só poderá fazer o que a lei expressamente autorizar.

A compreensão da diferença entre liberdade negativa e direito positivo é de fundamental importância para o gestor público.

A liberdade negativa delimita a esfera de liberdade dos indivíduos na sociedade civil, enquanto o direito positivo determina a esfera de poder do Estado sobre a sociedade.

A capacidade de buscar e encontrar “brechas na lei”, para poder fazer aquilo que a organização quer e necessita, é característica valorizada e desejada nos administradores de organizações e empresas privadas, que agem na esfera em que impera o princípio da liberdade negativa. Porém, essa capacidade não é, de modo algum, aceitável para um gestor público que terá todos os seus atos avaliados e julgados pela conformidade com o que a lei obriga ou expressamente autoriza.

Preste bem atenção! Normativamente, a primazia do público sobre o privado está fundamentada na contraposição entre interesse coletivo e interesse individual. O bem comum não resulta da soma dos bens individuais, razão pela qual os interesses individuais (privados) devem ser subordinados aos interesses coletivos (o bem público).

Logo, a primazia e precedência do público sobre o privado vão fazer com que as fronteiras entre um e outro sejam sempre móveis: ora o Estado avançando sobre a esfera privada, ora recuando, tal como no movimento pendular. Existem, porém, algumas atividades que atualmente estão consagradas como exclusivas do poder público; outras em torno das quais não existe qualquer consenso; e outras ainda que suscitam os mais vivos embates.

Você saberia listar algumas das atividades exclusivas do poder  público?

Pois bem, entre as ações consensualmente consideradas como exclusivas do Estado, talvez você tenha mencionado as atividades legislativas, judiciárias e das forças armadas e policiais.
Não seria imaginável que a elaboração de leis, que determinarão as obrigações e delimitarão a esfera de liberdade de todos, fosse conferida a mãos privadas. Por isso, a elaboração legislativa é normalmente conferida a corpos coletivos em que se encontram representados todos os interesses da sociedade, de tal forma que as leis por eles produzidas venham representar a vontade coletiva – ou, no mínimo, a vontade da maioria. Tampouco seria admissível que a função de dirimir os conflitos entre as partes fosse conferida a uma organização privada. Por isso, a atividade judiciária é também conferida a tribunais, compostos por magistrados com formação jurídica adequada e situados acima dos interesses das partes, garantindo a imparcialidade.
  Também não contestamos que a defesa das agressões externas deva caber às forças armadas nacionais e que a segurança e manutenção da ordem pública internas devam ser asseguradas pelas forças policiais. Por fim, tampouco questionamos que a representação dos interesses de um Estado no exterior deva ser encargo de diplomatas profissionais, mas se por uma razão qualquer um Estado não contar com representação diplomática própria em outro país, é admitido que os seus interesses sejam representados por terceiros. Mas a partir desses pontos, os consensos começarão a desaparecer e as divergências, a emergir e se tornar mais claras.
A coleta de impostos é considerada, no Brasil, como uma atividade eminentemente pública e executada por servidores públicos. No entanto, na Argentina chegou-se a considerar a possibilidade de terceirização do recolhimento de impostos como forma de aumentar a arrecadação para o Tesouro do País. No Brasil, o sistema penitenciário é público e administrado por servidores públicos, mas sob o governo da primeira-ministra Margaret Thatcher, no Reino Unido, a administração penitenciária iria ser privatizada por meio de licitações.
Há ainda outras atividades que são consideradas de interesse público, mas que não devem ou necessitam ser providas exclusivamente pelo poder público. Entre essas, se encontra a maior parte dos serviços sociais, como os de educação – já referidos nesta Unidade – e de saúde, que são oferecidos tanto por instituições públicas como privadas.
Nas sociedades capitalistas, considera-se que as atividades produtivas sejam, eminentemente, atribuição dos agentes privados. Em princípio, a decisão de produzir um determinado produto para comercialização no mercado seria exclusiva de quem se propusesse a produzi-lo e, como tal, independente do Estado, assim como também seria privativa do consumidor a decisão de adquirir ou não um determinado produto ofertado no mercado.
No entanto, considerações orientadas pelo interesse coletivo acabariam levando o Estado a intervir também nessa esfera tipicamente privada, acabando com a rígida delimitação das esferas de atividade humana entre tipicamente públicas e tipicamente privadas.
Durante o século XX, até mais ou menos a década de 1970, a expansão da ação do Estado sobre áreas até então consideradas privativas da sociedade civil seria notável. Essa intervenção do Estado iria se dar fundamentalmente sob três formas:
·         Regulação pública de relações sociais até então consideradas exclusivas da esfera privada;
·         Prestação de serviços sociais; e
·         Produção de bens considerados essenciais ou de interesse coletivo.

Vejamos, resumidamente, cada uma delas.

A regulação das relações de trabalho entre empregadores e empregados pelo Estado seria, possivelmente, a intervenção do Estado que maior impacto causaria nas sociedades ocidentais do início do século XX, até então culturalmente orientadas pelo liberalismo. Essa doutrina considerava que as relações econômicas, entre as quais se encontram as relações de trabalho, situavam-se no âmbito exclusivamente privado.
            Com a organização do movimento operário e intensificação da ação sindical e das lutas sociais na Europa, alimentadas pelas ideologias socialistas e comunistas do século XIX, a rigidez liberal gradualmente abriria espaço à intervenção do Estado, até o estabelecimento do que se convencionaria chamar de Estado de Bem-Estar Social. Após a grave crise econômica de 1929 e o período de depressão que seguiria, os Estados passariam também a intervir na regulação de outras esferas das atividades econômicas, de forma a evitar outros períodos de crises econômicas e sociais tão profundas.
Já a prestação de serviços sociais pelo Estado seria, ainda, outro componente importante da agenda do Estado de Bem Estar Social. Até então, os serviços sociais, hoje considerados de interesse público, como saúde, educação e assistência social, eram prestados por organizações privadas, geralmente, por instituições filantrópicas, confessionais ou laicas, com a notável exceção da oferta de educação primária, já provida por escolas públicas desde o século XIX. Ao longo do século XX, outros serviços sociais passariam ainda a ser oferecidos pelo poder público, como transporte, habitação e lazer.
A intervenção direta do Estado na produção de bens seria outro componente importante do avanço da esfera pública sobre a privada, sobretudo em sociedades da periferia do sistema capitalista, que começaram a industrializar-se tardiamente, como o Brasil.
Partindo do pressuposto de que os capitais nacionais privados não eram suficientes para os investimentos produtivos necessários à industrialização do País, e sendo esta considerada um bem comum e única via de desenvolvimento nacional, o Estado brasileiro passou a atuar como produtor de bens em áreas consideradas estratégicas, como siderurgia, mineração, produção de motores, de energia e de combustíveis, além do financiamento das atividades produtivas privadas. São exemplos disso a criação da(o):
·          Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em 1941;
·          Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), em 1942;
·          Fábrica Nacional de Motores (FNM), em 1943;
·          Companhia Hidroelétrica do São Francisco, em 1945;
·         Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE), em 1952, posteriormente transformado em Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES); e
·         Petrobras, em 1953.

Em tempos recentes, a participação do Estado na regulação das relações sociais, prestação de serviços e produção de bens iria refluir, no Brasil e no mundo, como tratado na disciplina Estado, Governo e Mercado.
Para efeito desta disciplina, o importante é estarmos conscientes de que a fronteira entre o público e o privado é sempre flexível, mutável no tempo e no espaço, de acordo com o que uma determinada coletividade nacional julga ser de interesse coletivo, ou não. Conforme Rousseau (1987, p. 50) sintetizaria, no Contrato Social, a questão dos limites entre o público e o privado: “[...] perguntar até onde se estendem os direitos respectivos do soberano e dos cidadãos é perguntar até que ponto estes podem comprometer-se consigo mesmos, cada um perante todos e todos perante cada um”.


AS PRERROGATIVAS DO PODER PÚBLICO SOBRE OS AGENTES PRIVADOS



Vimos, no tópico anterior, que as instituições públicas gozam de diversas prerrogativas em relação aos agentes privados, que derivam logicamente da assimetria existente entre Estado e sociedade civil. De acordo com o Direito Constitucional, existe toda uma hierarquia de prerrogativas, que, exercidas pelos agentes legalmente incumbidos, vão do poder soberano, que tudo pode, ao poder limitado em diferentes graus.
O exercício do poder soberano ocorre em momentos muito específicos, geralmente em períodos de elaboração constitucional, quando são definidas as regras básicas que irão reger permanentemente as relações entre os agentes privados entre si e entre estes e o Estado em uma determinada sociedade. Uma vez elaborada e aprovada a constituição de um país, a amplitude da capacidade de mudar aquela relação passa a ser reduzida.
No exercício do poder soberano, os constituintes brasileiros que elaboraram a Constituição de 1988 previram alguns mecanismos para a alteração das relações entre Estado e sociedade.
No Ato das Disposições Transitórias, a Constituição de 1988 determinaria a realização de um plebiscito para que os eleitores pudessem decidir sobre a forma de Estado e de governo sob a qual desejariam viver: República ou Monarquia; presidencialismo ou parlamentarismo. Em 1993, na data prevista pela Constituição, a maioria dos brasileiros acabaria se manifestando pela manutenção da República e do regime presidencial vigentes no País.
No entanto, nos regimes democráticos contemporâneos, como o brasileiro, decisões por participação popular direta têm mais valor simbólico do que importância e poder efetivos.
Constitucionalmente, plebiscitos e referendos são mecanismos concebidos para a população decidir diretamente sobre questões bem específicas e previamente delegadas pelo parlamento ao eleitorado, sejam elas de ordem propriamente constitucional – como o plebiscito sobre a forma de Estado e de governo, realizado em 1993 – ou simplesmente de ordem legal - como o referendo sobre a Lei do Desarmamento, realizado em 2005.
Na verdade, tão ou mais importante e frequentes que os mecanismos de democracia direta para alterar as relações entre público e privado são as Emendas Constitucionais. Por meio delas, os representantes do povo no Congresso Nacional podem quase tudo, exceto pretender abolir:
·          A forma federativa de Estado;
·          O voto direito, secreto, universal e periódico;
·          A separação dos Poderes; e
·          Os direitos e garantias individuais.

As Propostas de Emenda Constitucional (PECs) podem ser aprovadas por maioria qualificada, isto é, de 3/5 dos deputados federais e 3/5 dos senadores, em votações realizadas em dois turnos em cada uma das casas do Congresso Nacional. 
Para a elaboração e alteração das Leis Complementares, previstas pela Constituição, é requerida a aprovação da maioria absoluta dos representantes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, ou seja, 50% mais um de todos os seus membros. Já a aprovação de Leis Ordinárias requer apenas maioria simples, quer dizer, de 50% mais um dos presentes, em cada casa, nas sessões com quórum (50% mais um de todos os representantes).
Aqui é importante destacarmos que nos regimes democráticos, as mudanças que alteram fundamentalmente as relações entre público e privado – aquelas que criam obrigações para os cidadãos – são incumbência exclusiva do Poder Legislativo.
Este pode restituir ao povo que elegeu os seus membros a prerrogativa de decidi-las diretamente, por meio de plebiscitos* ou referendos*, mas não poderá delegá-la ao Poder Executivo.
Em nenhuma hipótese, os agentes do governo podem impor obrigações e restrições aos cidadãos que já não estejam previstas em lei. Excetuando as decisões direitas pelo voto popular – que é o poder legislativo originário – que se dão sempre por maioria simples, as decisões tomadas pelas instituições legislativas requerem maiorias diferenciadas conforme o seu grau de importância, como detalhado no parágrafo anterior.
As prerrogativas de criar normas infralegais – aquelas que derivam das leis existentes e não criam novas obrigações para os particulares – são do Poder Executivo. O presidente da República, os governadores de Estado e os prefeitos municipais têm o poder de emitir Decretos, regulamentando as disposições legais.
Os Conselhos, criados por Lei, podem normatizar por Resolução. E os
ministros e secretários de Estado, por sua vez, podem exercer seu poder normativo com efeitos externos, isto é, sobre a sociedade, por meio de Portarias. Até o fim da linha hierárquica, o servidor público, na qualidade de agente do Estado, irá exercer um conjunto de poderes com efeitos sociais, que serão objeto de análise detalhada ainda neste trabalho.
Ao Estado são ainda garantidas certas prerrogativas mesmo quando estabelece contratos com os agentes privados – embora conceptualmente um contrato seja uma relação estabelecida entre iguais. O Estado pode, por exemplo, alterar ou rescindir unilateralmente os seus contratos, se assim requerer o interesse público. Em contrapartida, o poder público fica obrigado a compensar o agente privado pelo prejuízo que a alteração contratual imposta vier a lhe causar, resguardado o equilíbrio financeiro da parte contratada.

O Estado pode agir unilateralmente porque ele – somente ele – age no interesse público, atuando os demais agentes privados – lícita e legalmente – na defesa dos seus interesses privados.

Por essa razão, os contratos celebrados pelo Estado com os particulares são regidos pelo Direito Administrativo. Na sociedade civil, os contratos estabelecidos entre partes juridicamente iguais são regidos pelo Direito Civil e só podem ser alterados mediante a vontade expressa de ambas as partes contratantes. E não poderia ser diferente. Como cada qual defende, legitimamente, seus interesses privados, nenhum contrato pode ser alterado ou rescindido unilateralmente.
O Estado tem ainda a prerrogativa de interferir num dos direitos mais caros às sociedades liberais e capitalistas, que é o direito à propriedade. O Estado pode, sem cometer qualquer arbitrariedade, operar a transferência compulsória de um bem de um indivíduo ou de uma empresa particular para o domínio público, em caráter temporário ou permanente, conforme o caso, sempre que houver um motivo de interesse público legalmente sustentado.
Essa intervenção do poder público na propriedade privada é imposta de forma discricionária, mas sempre com ônus para o Estado, que deve indenizar a pessoa – física ou jurídica – que tiver o seu patrimônio expropriado.
A lei faculta ao Estado desapropriar um particular quando houver:
·         Necessidade pública, isto é, quando a Administração Pública se defrontar com situações de emergência que, para serem satisfatoriamente resolvidas, exigem a transferência urgente de bens de terceiros para o seu domínio e uso imediatos.
·         Utilidade pública, quando a transferência de bens de terceiros para a Administração for conveniente, embora não imprescindível, como no caso de expropriação de terras, urbanas ou rurais, para a construção de vias públicas.
·         Interesse social, quando as circunstâncias impuserem a distribuição ou o condicionamento da propriedade para o seu melhor aproveitamento, utilização ou produtividade em benefício da coletividade ou de categorias sociais que forem objeto do amparo específico do poder público, como nos casos de reforma agrária.
Como podemos observar, as prerrogativas do Estado são muitas, mas todas exercidas dentro da estrita legalidade e sempre em benefício público. Em caso contrário, não caberia falar de prerrogativas, mas de arbítrio, que seria o abuso do poder público.
Além disso, na arquitetura institucional dos Estados democráticos contemporâneos não se encontram previstas apenas prerrogativas para a ação do Estado, mas também deveres para este e direitos para o cidadão. É dentro dessa perspectiva que são concebidos os serviços públicos. Observe, no Quadro abaixo, uma das possíveis formas de classificarmos os serviços públicos.



Em um Estado de Direito, os serviços prestados pela Administração Pública decorrem das funções constitucionais e legais do poder público, não sendo nunca serviços voluntariamente ofertados por decisão autocrática dos governantes ou por iniciativa dos funcionários do Estado. Na verdade, a prestação voluntária de serviços é proibida na Administração Pública e aos servidores públicos, a não ser nos casos previstos por lei, e restrita à esfera privada.
É norma do Direito Público, derivada da assimetria entre Estado e sociedade civil, que ao Estado só cabe fazer aquilo que a lei mandar, ou expressamente autorizar. Portanto, somente à lei caberá determinar quais serviços serão prestados e quem terá ou não acesso a eles. Assim, o princípio contemporâneo de cidadania determina que qualquer serviço oferecido pelo Estado – seja ele gratuito ou pago – deva ser conscientemente executado pelo prestador como um dever e usufruído e percebido pelo usuário como um direito.
Nas sociedades com pouca experiência democrática – e, consequentemente, limitada cultura de cidadania – confunde-se, com frequência, gratuidade com caridade ou filantropia, assim como serviços públicos com serviços gratuitos e serviços pagos com serviços privados. Essas noções não só são equivocadas como são conflitantes com o conceito de cidadania e o seu desenvolvimento na cultura política de uma sociedade, pois tanto o setor privado pode oferecer serviços gratuitos, sem que isso os torne serviços públicos, quanto o setor público cobrar pelos serviços que oferece, sem que isso faça deles serviços privados. Por isso é necessário esclarecer devidamente essas diferenças.
O funcionamento dos serviços privados e pagos é o mais facilmente compreensível: são pagos por quem deles usufrui para aqueles que os prestam – e que arcam com os seus custos operacionais. Assim funcionam os consultórios médicos particulares, em que a paciente paga ao médico; as escolas privadas que não recebem nenhum subsídio, em que os pais dos alunos pagam pela educação que os seus filhos recebem; todas as empresas privadas de prestação de serviços, em que o cliente paga ao fornecedor.
Já o funcionamento dos serviços gratuitos não é tão fácil de ser compreendido, pois nem sempre fica claro para o usuário quem arca com os seus custos operacionais: se o Estado por meio de impostos, como no caso do fornecimento de título de eleitor; se o setor privado, como no caso dos serviços assistenciais prestados por instituições particulares de caridade; se ambos, como é o caso de diversas Organizações Não Governamentais (ONGs), que recebem dinheiro tanto do Estado quanto do setor privado para custear os seus serviços; ou ainda, se por uma composição de recursos advindos do Tesouro e de contribuições sociais, como os que compõem o orçamento da Seguridade Social, que é uma das fontes de financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS).
Existem ainda serviços que são parcialmente pagos pelo usuário e oferecidos pelo setor público, que arca com os demais custos não cobertos pelas taxas cobradas, como os exames vestibulares e as matrículas nas universidades públicas. E existem também serviços públicos inteiramente pagos, como os de inspeção feitos pelas diferentes agências reguladoras nas empresas e instituições reguladas pelo Estado.

Então, podemos afirmar que não existe qualquer relação entre gratuidade e serviços públicos?

Se respondeu que sim, acertou, pois temos serviços privados que podem ser gratuitos e serviços públicos que podem ser pagos.
Logo, o que faz com que o poder público decida oferecer um determinado serviço gratuitamente é a conveniência do poder público ou a necessidade social.
Por exemplo, é conveniente ao Estado oferecer gratuitamente iluminação pública, já que seria praticamente impossível cobrar com justiça dos usuários a iluminação que beneficia a cada um. O mesmo vale para os serviços de segurança pública e defesa de fronteiras. Já como bom exemplo de gratuidade por necessidade social figura o Programa Universidade para Todos (ProUni), do Ministério da Educação. Aos estudantes cuja renda familiar per capita fique abaixo de uma determinada quantia, considerada insuficiente para arcar com os custos de uma mensalidade em um curso superior oferecido por instituições privadas, são oferecidas bolsas de estudo integrais – portanto, há gratuidade; e aos que têm renda em um determinado patamar que lhes permita arcar com parte dos custos das mensalidades, são oferecidas bolsas parciais.
A distinção entre o público e o privado, a delimitação da fronteira entre uma e outra esfera e a extensão dos poderes e das prerrogativas do poder público sobre os agentes privados são derivadas da contradição existente entre interesse privado e interesse público nas sociedades contemporâneas. Se esses interesses fossem coincidentes, como foram na Pré-História da humanidade, e ainda são em algumas sociedades tribais existentes pelo mundo, inclusive no Brasil, não haveria Estado, Administração Pública, Direito Público nem Direito Privado.

Até aqui, examinamos as complexas relações que se estabelecem entre público e privado nas sociedades capitalistas contemporâneas. A partir de agora, para aprofundar o conhecimento do funcionamento da esfera pública, faz-se necessário analisarmos em detalhes a relação que se estabelece no interior do Estado entre poder público e servidor público.
Vamos lá?

O ESTADO E O SERVIDOR PÚBLICO

A relação que o Estado estabelece com os seus servidores – seja na esfera federal, estadual ou municipal – é de natureza inteiramente distinta da relação que se estabelece entre empregadores e empregados no setor privado. Para o gestor público, conhecer essa especificidade é fundamental, e a melhor maneira de explicitá-la é contrastando as relações de trabalho na esfera pública com as da esfera privada. Como vimos ao comparar as instituições públicas com as organizações privadas, nestas, o empregador – que tanto pode ser um indivíduo, quanto uma empresa capitalista ou uma associação sem fins lucrativos -estabelecerá autonomamente os fins que irá perseguir, e para pôr sua organização em funcionamento, contratará livremente no mercado de trabalho os indivíduos que bem entender, atribuindo-lhes as funções que lhe aprouver. Respeitados os limites impostos pela lei, empregados e empregadores encontram-se na plenitude do exercício da sua liberdade negativa.

Agora para compreendermos melhor a amplitude da liberdade negativa exercida pelos agentes privados e, por oposição, os limites impostos ao Estado na gestão das suas instituições e no trato com os seus servidores, imaginemos uma situação no limite do absurdo.

Suponha que um empresário qualquer decida lançar no mercado um novo produto, como água de torneira engarrafada. Se observar e cumprir as normas estabelecidas pelos poderes públicos competentes, como as da Agência de Vigilância Sanitária e da Secretaria Estadual de Saúde, esse empresário poderá, legítima e legalmente, lançar-se no seu empreendimento. Para tanto, ele poderá contratar quem quiser.
Desde que respeite as determinações da legislação trabalhista, esse empresário poderá, se quiser, empregar apenas mulheres negras, idosas e portadoras de deficiência física, não necessitando justificar esse critério perante ninguém, por se tratar de uma ação afirmativa que não contraria a lei. Poderá ainda organizar a produção e comercialização do seu produto da forma que julgar mais conveniente, criando um departamento comercial voltado para o mercado da região do semiárido nordestino e outro departamento de exportação voltado para os países do Saara. Se nesses mercados o empresário imaginário encontrar compradores para o seu produto, auferirá lucros, sendo o seu empreendimento revestido de pleno sucesso. Se após algum tempo, ele quiser se desfazer do seu empreendimento e mudar de ramo de atividades, ninguém poderá impedi-lo. E se ao contrário, após ter acumulado prejuízos e dilapidado o seu patrimônio pessoal, resolver encerrar o empreendimento, poderá fazê-lo livremente, demitindo todos os seus empregados mediante o pagamento do que a lei exigir.

Você pode estar se perguntando: o que queremos enfatizar com
este exemplo?

Sobretudo que a liberdade de empreendimento, de contratação e de demissão de empregados desse empresário imaginário é uma prerrogativa exclusiva do setor privado e inexistente no setor público. Tipicamente, no setor privado, empregadores e empregados estabelecem entre si relações contratuais no pleno exercício de sua liberdade negativa. No setor público, a relação que se estabelece entre Estado e servidor é a de representação, não sendo o servidor outra coisa senão agente do poder público.

Neste ponto, você irá provavelmente perguntar: o que quer dizer servidor como representante do Estado e agente do poder público?

São agentes do poder público todas aquelas pessoas físicas incumbidas de exercer as funções administrativas que cabem ao Estado e que ocupam cargos ou funções na Administração Pública.

E o que vêm a ser cargos?

Os cargos ou funções pertencem ao Estado, e não aos agentes que os exercem, razão pela qual o Estado pode, discricionariamente, suprimi-los ou alterá-los. Os cargos são os lugares criados por lei na estrutura da Administração Pública para serem providos por agentes, que exercerão suas funções na forma da lei. É o cargo que integra o órgão, enquanto o agente, como pessoa física, o ocupa na condição de titular. A função é o encargo legalmente atribuído aos órgãos, cargos e seus agentes.
Portanto, órgãos, cargos e funções, existentes na Administração Pública, são criações legais que se encarnam nos agentes, que são pessoas físicas. Na estruturação do serviço público, o Estado cria cargos e funções, institui classes e carreiras, faz provimentos e lotações, estabelece vencimentos e vantagens, e delimita deveres e direitos para os servidores:

Cargo público é o lugar instituído na organização do serviço público, com denominação própria, atribuições e responsabilidades específicas e estipêndio correspondente, para ser provido e exercido por um titular, na forma estabelecida em lei. Função é a atribuição ou o conjunto de atribuições que a administração confere a cada categoria profissional ou comete individualmente a determinados servidores para a execução de serviços eventuais [...].

Os cargos são apenas os lugares criados no órgão para serem providos por agentes que exercerão as suas funções na forma legal.
O cargo é lotado no órgão e o agente é investido no cargo. Por aí, se vê que o cargo integra o órgão, ao passo que o agente, como ser humano, unicamente titulariza o cargo para servir ao órgão. Órgão, função e cargo são criações abstratas da lei; agente é a pessoa humana, real, que infunde vida, vontade e ação a essas abstrações legais (MEIRELLES, 2008).
Assim como na Administração Privada, aos diferentes cargos são atribuídas diferentes funções, e o acesso a esses cargos se dá por diferentes formas de investidura. Estas derivam da natureza distinta das funções públicas a serem exercidas por cada agente.
A investidura política dá-se por eleição. No Brasil, esta é a forma de investidura para todos os cargos políticos no Poder Legislativo, ou seja, para os cargos de representação popular, e não para os postos administrativos, e para os mais altos cargos do Poder Executivo em suas diferentes esferas – federal, estadual e municipal. Nas democracias, os cargos de maior poder têm essa forma de investidura, que pode ser por eleição direta ou indireta.
No Brasil, a partir da vigência da Constituição de 1988, todas as eleições passaram a ser diretas, isto é, os cidadãos escolhem diretamente, através do voto, os ocupantes dos cargos de presidente, governador, prefeito, senador, deputado federal, deputado estadual ou distrital e vereador, cujos mandatos são temporários e rigidamente determinados.
No entanto, existem democracias em que o acesso a alguns cargos ocorre por eleição indireta, ou seja, por intermédio de um colégio eleitoral no qual os eleitores não são os cidadãos, mas seus representantes, como nas eleições para o Senado na França e a escolha dos primeiros-ministros nos regimes parlamentaristas. Em outras democracias, há ainda alguns cargos de senador vitalício, como na Itália, no Chile e no Peru.
Aos agentes políticos do Poder Executivo cabe, legitimamente, a definição das diretrizes e das políticas de governo a serem observadas por toda a administração Pública. Os agentes eleitos, assim como os agentes por eles nomeados nos primeiro e segundo escalões da Administração Pública, estão democrática e legitimamente investidos do poder de reorientar a ação do poder público para a direção que lhes aprouver, respeitados os limites das leis e da Constituição. Aos escalões inferiores da Administração, cabe a observância das diretrizes e orientações de governo, não devendo opor resistência a estas orientações.

Como cidadão, o funcionário público, em qualquer nível, pode votar em quem bem entender nas eleições, mas, na condição de agente do poder público, ele deverá cumprir com exação as determinações superiores, sempre – é claro – que se essas forem legais.

A maioria dos agentes, investida pelas demais formas, não tem seu exercício nos cargos delimitado temporalmente, sendo a forma mais comum de investidura originária o concurso público.
Os agentes assim investidos, após o cumprimento e aprovação no estágio probatório, tornam-se agentes efetivos, adquirindo estabilidade no serviço público.
            Vulgarmente considerada como um privilégio do serviço público, já que inexistente no setor privado, a estabilidade é, na verdade, uma forma de proteção do servidor de possíveis pressões de governantes temporários e de compensação de alguns deveres e restrições que recaem exclusivamente sobre os servidores públicos, e não sobre os empregados do setor privado.
Além de estabilidade, a investidura em alguns cargos é vitalícia, como nos casos de juízes, promotores e procuradores. Mais uma vez, não se trata aqui de privilégio, mas de garantia de independência dos ocupantes dessas funções de pressões oriundas dos agentes políticos, que poderiam comprometer a imparcialidade com que devem desempenhar suas funções.
Existe ainda a investidura por comissão, que é sempre de natureza transitória, para provimento de cargos de direção, chefia e assessoramento. Os agentes investidos em cargo em comissão podem ser exonerados a qualquer momento, já que são cargos de livre nomeação e da confiança dos agentes públicos hierarquicamente superiores.
Diferentemente do setor privado, em que os cargos são criados e as funções definidas discricionariamente pelo empregador, assim como a admissão e demissão dos indivíduos se dá em bases estritamente contratuais, no setor público, os cargos e suas formas de investidura serão sempre criteriosamente determinados por lei tendo em vista resguardar o interesse público.
Outra grande diferença entre os cargos no setor público e os empregos na iniciativa privada é que o Estado confere aos seus servidores efetivos uma série de garantias inexistentes no mercado – como a estabilidade e a irredutibilidade dos vencimentos. Apesar dessas garantias, o poder público se reserva algumas prerrogativas, sem as quais não poderia ajustar a Administração Pública às mudanças da sociedade e dos interesses coletivos ao longo do tempo.
Por exemplo, se por um lado o Estado não pode demitir um servidor estável, por outro pode transformar ou extinguir o cargo em que ele se encontra investido. No caso de extinção, o servidor será posto em disponibilidade, recebendo remuneração proporcional ao seu tempo de serviço, sem trabalhar, até que a Administração o reaproveite em outro cargo.
Na reforma do Estado, iniciada em 1995, no plano federal, uma série de cargos foi extinta da estrutura administrativa, passando os seus agentes efetivos a ocuparem cargos em extinção, sem perspectivas de ascensão funcional e salarial.
Naquele momento, os mentores da reforma administrativa julgaram que os cargos extintos – como os de motoristas, ascensoristas, estatísticos, arquitetos e tantos outros – não eram típicos de Estado, não devendo, por isso, mais existirem enquanto cargos públicos.
Essa decisão discricionária não foi, entretanto, arbitrária, posto que aprovada pelo Poder Legislativo por meio de Emenda à Constituição.
Em outros casos menos drásticos, os servidores podem ainda ser transferidos ex officio – isto é, compulsoriamente, no interesse da Administração Pública, de uma localidade para outra – ou ter sua lotação transferida de um órgão público para outro, se assim for do interesse da Administração.
Embora o serviço público e o emprego privado sejam de naturezas inteiramente distintas, como demonstrado até aqui, os direitos e benefícios usufruídos pelos servidores públicos e pelos empregados no setor privado passariam, com o tempo, a ser cada vez mais convergentes.
Vejamos algumas situações para ilustrar isso:
·         Há algumas décadas, apenas os empregados do setor privado tinham direito a receber um 13º salário anual.
Atualmente, benefício equivalente é concedido aos servidores públicos federais sob o nome de gratificação natalina.
·         Até bem pouco tempo atrás, os servidores públicos estáveis da União podiam incorporar permanentemente, e em cascata, aos seus vencimentos a remuneração auferida por terem ocupado cargos em comissão por um determinado tempo, privilégio desconhecido no setor privado e excluído, em 1997, da lei que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União.
Apesar dessas convergências, para uns e outros seguem existindo ordenamentos jurídicos distintos: o Regime Jurídico Único (RJU), para os servidores da União, e uma série de outros regimes jurídicos, não regidos por contrato, que dispõe sobre as relações dos Estados e dos municípios com os seus servidores titulares de cargos públicos; e a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), para os trabalhadores do setor privado e ocupantes de empregos públicos. Vamos examinar algumas das principais diferenças entre o RJU e a CLT.
A Constituição e o RJU garantem ao servidor federal que tenha passado pelo período de estágio probatório estabilidade na função pública, obrigando-o a ela se dedicar integralmente e lhe impondo limites de remuneração. Por outro lado, a CLT não garante estabilidade ao trabalhador no emprego, mas lhe assegura um Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), alimentado por contribuição patronal e a ser sacado pelo trabalhador no momento da sua aposentadoria, em caso de demissão sem justa causa e em alguns outros casos especiais previstos em lei, e não lhe impõe limites de remuneração.
Sobre a adequação e justiça das diferenças entre o RJU e a CLT, não existe qualquer consenso, sendo elas frequentemente questionadas pelos mais variados segmentos da sociedade: imprensa, associações profissionais, sindicatos patronais, de trabalhadores e servidores e pelos sucessivos governos.
Independentemente das divergências, o que importa aqui precisar é que diferenças jurídicas, conceituais e funcionalmente sustentadas não devem ser confundidas com privilégios. Estes podem e devem ser combatidos e eliminados, uma vez que conflitam com o princípio básico e fundamental de uma República, que é o da igualdade entre os seus cidadãos. Já as diferenças de direitos justificam-se plenamente, sem contradizer os princípios republicanos, sempre e quando forem embasadas em diferenças funcionais, legal e legitimamente estabelecidas pelo poder público, porque consideradas necessárias à defesa e consecução do interesse público.

Não fosse assim, não haveria qualquer sentido em delimitar conceitual e legalmente os espaços e os limites entre o público e o privado, como foi feito ao longo deste trabalho.



Fonte: apostila de especialização em Gestão Pública Municipal.

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