REBELA, v. 2, n. 2, out. 2012
A Nova Classe Média e a Dialética do Consumo
Paulo Abdala1
Resumo
O tema da nova classe média tem sido recorrente,
nos últimos anos, sem que se encontrem reflexões
críticas sobre sua relação com o tema do consumo ou problematizações sobre seus
fundamentos teórico-conceituais. Esse artigo apresenta uma contribuição no
sentido de superar estas ausências. Recorre-se às proposições de Álvaro Vieira
Pinto: compartilha-se a crítica ao papel cumprido pela academia ao selecionar e
criar modelos convenientes que encobrem as contradições sociais. Suas
proposições sobre consumo propiciam um conjunto de conceitos dialeticamente
articulados a partir dos quais podemos iniciar uma reflexão crítica sobre a
associação entre consumo e progressos sociais.
Palavras-chave: Classe média. Consumo.
Desenvolvimento.
La Nueva Capa Media y la Dialéctica del Consumo
El tema de la nueva capa media ha sido
recurrente, en los últimos años, sin que se pueda hallar reflexiones críticas
acerca de su relación con el tema del consumo o problematizaciones sobre sus
fundamentos teórico-conceptuales. Presentamos una contribución en el sentido de
superar esas ausencias. Recorrimos a las proposiciones de Álvaro Vieira Pinto:
compartimos la crítica al papel cumplido por la academia al seleccionar y crear
modelos convenientes que encubren las contradicciones sociales; y nos
inspiramos en las proposiciones acerca del consumo porque ellas propician un
conjunto de conceptos dialéctica de la a mente articulados desde los cuales
podemos empezar una reflexión que haga la problematización acerca sociación
entre consumo y avances sociales.
Palabras-clave: Nueva Capa Media.
Dialéctica del Consumo. Álvaro Vieira Pinto.
The new medium class and the dialectics of
consumption Abstract
The
theme of the new medium class has been very present in the last years, without
critical reflections about the relationship with the theme of consumption or
the problematization of its theoretical and conceptual fundaments. This article
presents a contribution in order to overcome such absences. The propositions of
Álvaro Vieira Pinto are adopted, sharing the critique of the role played by the
academy in the selection and creation of convenient models which hide social
contradictions. His propositions about consumption offer a set of dialectically
articulated concepts which allow the starting of a critical reflection about
the
association
between consumptions and social progress.
Keywords: Medium class. Consumption. Development.
Introdução
O tema da nova classe média
tem sido recorrente, nos últimos anos, sem que se encontrem reflexões críticas
sobre sua relação com o tema do consumo e, menos ainda, problematizações sobre
os fundamentos teórico-conceituais sobre os quais se ergue. Encontrase, ainda, uma
associação irrefletida entre aumento quantitativo da classe média, consumo e
desenvolvimento.
Neste ensaio apresenta-se
uma contribuição no sentido de superar estas ausências. Para tanto, recorre-se
às proposições de Álvaro Vieira Pinto, elaboradas em 1975 e editadas em 2008,
em um duplo sentido: compartilha-se a crítica ao papel cumprido pela academia
ao selecionar e criar modelos convenientes que encobrem as contradições
sociais; e suas proposições sobre consumo propiciam um conjunto de conceitos
dialeticamente articulados a
partir dos quais se pode
iniciar uma reflexão problematizadora sobre a associação linear e mecanicista
que relaciona consumo e progressos sociais.
Assim, o texto está
organizado da seguinte forma: uma apresentação da dialética do consumo a partir
das formulações de Álvaro Vieira Pinto; uma retomada da teoria de classes
sociais de modo a situar o conceito de nova classe média como parte do processo
acima mencionado, no qual a academia contribui para a seleção de conceitos
convenientes à reprodução da ordem; para finalizar, estas ideias são usadas
para refletir sobre o contexto brasileiro, em uma formulação ainda incipiente
que muito se beneficiará de críticas e debates2.
Antes de avançar é preciso
conceituar desenvolvimento, já que ainda que não se realize uma discussão
focada neste tema, ele se constitui no cenário sobre o qual os temas da nova
classe média e do consumo se localizam. Adota-se como referência a definição de
Vieira Pinto (2008, p. 420): “desenvolvido é o país soberano, ou seja, que
experimenta um modo de ser existencial da população autônoma e com igualdade
cultural, social e econômica”.
A dialética do consumo
Vieira Pinto (2008, p.
299), escrevendo em 1975, indica que o traço do consumo em condições
subdesenvolvidas é a disparidade com que ele se efetua dentro de um mesmo país.
Enquanto parcelas
importantes da população tem acesso precário, ou nenhum acesso, a um padrão de
consumo mínimo, as classes dominantes tem interesse em se mostrar relativamente
consumidoras, "exibindo apenas a imagem risonha da realidade
nacional", mostrando seu sucesso como classe que comanda o país. Essa
imagem positiva de uma nação em acelerado
progresso justifica a
exploração das massas trabalhadoras, ao mesmo tempo em que facilita a ascensão
de parcelas da mísera população às camadas médias, assim como o enriquecimento
exacerbado de uma pequena parcela da burguesia.
Apesar das décadas que se
passaram desde o momento em que estas ideias foram produzidas, elas se
constituem em importante fonte de inspiração para pensars o tempo presente,
marcado pela euforia do Brasil sexta economia do mundo e pelo conseqüente
obscurecimento do fato de que, na divisão internacional do trabalho, ainda
somos uma economia exportadora de produtos com baixa incorporação tecnológica
e, portanto, continuamos transferindo valor para as economias centrais. Este
não é o espaço para aprofundar este debate. Trata-se aqui apenas de fazer uma
ressalva para que não se descarte
tão facilmente a noção de
subdesenvolvimento, entendendo que, para o autor que tomado como referência,
ele é o polo negativo do desenvolvimento nos termos em que foi acima definido.
O entendimento de consumo
tem livre trânsito no senso comum e, parentemente, dispensa definição. No
entanto, para compreender seu conteúdo lógico implícito é preciso reconhecer
que o entendimento corrente expressa operações matemáticas a partir dos termos
do mercado, ou seja, mensurações sobre quais grupos populacionais consomem
tipos de produtos. Para superar essa simplificação, Vieira Pinto (2008) propõe
uma análise dialética do consumo.
Para iniciar, é preciso
compreender o conceito de bem a partir do conceito de valor, evitando a
confusão entre essas noções. Como o valor só pode ser entendido socialmente,
assim como o eu só se reconhece em contato com o outro, o bem
"é o que vem a ser reconhecido como qualidade positiva porque [o homem] o
compara com a situação dos que não o possuem, ou o perderam, e por isso se
regozija em estar na posse dele" (PINTO, 2008, p.305). Assim, a formação
de valor de um bem é caracteristicamente um fato social.
O consumo, por sua vez,
indica o “avanço do domínio do homem sobre as forças da natureza, pelo
conhecimento dos fenômenos que aí se passam e das ideias que os regem”, um
processo que tem como ponto de partida a exigência da vida em se conservar.
Assim, desde os primórdios, o termo consumo “condensa a ação primordial que se
acha na base dele, a de consumar”. Ou seja: “sem o conhecimento,
derivado da ação sobre a natureza do animal que enveredou pelo caminho da
antropogênese, seria impossível consumar o bem que vai ser consumido”
(VIEIRA PINTO, 2008, p. 307).
A partir destas formulações
iniciais, o autor confronta a definição dita técnica dos economistas: “o
consumo mede o grau de absorção dos bens socialmente disponíveis por
determinado indivíduo, o que, concretamente falando, quer dizer por determinada
classe social”. Em contraposição, na concepção dialética crítica, “o consumo
implica o domínio da humanidade inteira sobre as forças da natureza”. O consumo
compõe-se dialeticamente de dois momentos antagônicos: as ações humanas
envolvidas no consumar, no fabricar, fazer o objeto, o bem, a mercadoria
consumível; e o consumir, que “representa a aniquilação, a negação do consumado
pelo aproveitamento que dele o homem faz, com isso destruindo-o, obrigando-o a
fabricar outro objeto igual ou melhor do que o anterior” (VIEIRA PINTO, 2008,
p. 307-8). Portanto, subjacente à dialética do consumo se encontra o trabalho:
“o ciclo compra-consumo-sumiço-fabricação-de-outro-exemplar-venda-compra é
sustentado pelo trabalho e revela outro importante aspecto que a análise
filosófica do processo explicita, a saber, o caráter humano, tanto o positivo,
o fazer, quanto o negativo, o esfazer, o consumir” (VIEIRA PINTO, 2008, p.
309).
Dessa relação decorre que o
gastar e o desgastar são duas faces diferentes unidas dialeticamente. Consumir
é desgastar o objeto no uso, porém, para que seja possível desgastálo é
necessário, antes, gastar valores econômicos. Gastar para desgastar. Todavia,
para obter dinheiro é preciso desgastar a si mesmo no processo de trabalho,
negando a própria existência. Esse ato de negação de si mesmo é positivamente
remunerado com dinheiro na forma de salário. Por sua vez, o salário é gasto
para obter o direito de desgastar um objeto que some, dando origem a uma nova
necessidade de consumar, de produzir novamente (VIEIRA PINTO, 2008).
Assim, quanto mais alguém
consome e desgasta diferentes mercadorias, mais necessita gastar. Quanto mais
necessita gastar, mais dinheiro é necessário ter. Para ter mais dinheiro, o ser
humano se desgasta mais e mais, sacrificando sua própria condição de vida e sua
saúde.
Faz isso em troca de
garantir o fluxo acelerado de consumo, que propulsiona sua realização pessoal a
partir da sensação de incorporação do valor dos bens que possui. Ou seja,
consumir é adquirir o valor de um bem, mas também é consumir a si mesmo neste
processo, o que a partir de certo nível se potencializa. Na tentativa de
antecipar o prazer produzido pelo consumo, o homem faz empréstimos, pagando
juros. Como uma montanha russa que acumula energia, o juro da dívida, ou o
desgaste reproduzido continuamente sem nenhum tipo adicional de consumo,
garante a reprodução ampliada da negação de si mesmo, sem que esse consumo de
si tenha como contrapartida a energia repositora, psíquica ou física, do
consumo da mercadoria. A dívida é um desgaste do ser pelo trabalho, agindo em
condição inercial, até ser parada pelo pagamento, que representa adiar um
possível consumo imediato. Em outras palavras, a dívida potencializa o lado
negativo do consumo em troca de permitir o prazer adiantado pelo consumo
antecipado da renda do trabalho que ainda não se consumou.
Vieira Pinto (2008, p.
321-2) elabora, ainda, uma distinção entre o consumidor e o não-consumidor:
É evidente que numa
sociedade declarada farta, que sacralizou o consumo, dele se orgulhando, porque
o julga o rasgão do firmamento por onde desce a voz da divindade que abençoa,
repetimos, é evidente que em tal meio não pode ser o mesmo o conceito de
consumo imaginado pelo consumidor e o que nasce no espírito do infeliz não-
consumidor. [...] O consumidor para quem o consumo é um hábito social que
exerce continuamente e em relação a tudo quanto lhe apetece, considera-se
naturalmente instalado nessa condição em virtude de um direito que lhe é
inerente e que pratica livremente, sem indagar se todos os homens dele gozam
igualmente.
[...] O não-consumidor,
para quem o consumo é um ato excepcional, para quem a compra de um objeto, às vezes
de uso banal ou imperceptível para a classe dominante, reveste-se de um estado
psicológico de esperança, de ansiedade e frequentemente de dúvida sobre a
sensatez da decisão, tem de ser, obrigatoriamente, o indivíduo que não está
tranquilamente consciente do direito de consumo de tal coisa.
Com estas indicações é
preciso interromper o tema do consumo e introduzir uma discussão sobre o tema
subjacente a essa elaboração, o das classes sociais.
Classes sociais:
abordagens e implicações de seus usos
Nas abordagens sobre
classes sociais se destacam duas vertentes. Na perspectiva marxista a classe
social se refere à posição ocupada nas relações sociais de produção. De um
lado, os capitalistas detentores dos meios de produção; de outro, o
proletariado obrigado a vender sua força de trabalho para sobreviver. A
segunda, com inspiração no positivismo e na sociologia funcionalista norte
americana, define classe social como um estrato, um agrupamento mensurável a
partir de variáveis.
A teoria das classes
sociais surge no âmbito do pensamento marxista, apesar de ser conhecido o fato
de Marx (1980) não a ter formulado, deixando inacabado este capítulo no livro
III de O Capital. Mesmo assim, ao longo de suas obras, as classes sociais
aparecem como recurso de análise para diferentes momentos históricos, deixando
indícios suficientes para que seus comentadores e seguidores sedimentassem o
conceito (DOS SANTOS, 1987).
Em Marx (1980), a classe
social é entendida a partir da contradição fundamental do modo de produção
capitalista. Ou seja, a contradição entre capital e trabalho, originada na
separação dos produtores e dos meios de produção com o advento da propriedade
privada e do direito burguês. O trabalho, de maneira abstrata, pode ser
compreendido como o dispêndio de energia humana na transformação da natureza em
um produto socialmente útil, sendo sua utilidade central para a manutenção da
própria vida (FOSTER, 2010). A alienação dos meios de produção levou ao
surgimento de duas classes fundamentais: a burguesia e o proletariado, antagônicas
por definição, sendo o conflito entre estas diferentes posições o motor da
história (MARX e ENGELS, 2006).
Na segunda perspectiva, a
da estratificação social, foi suprimido o significado original e conflituoso do
termo classe social. Stavenhagen (1962, p. 133) ressalta que, " sobretudo
na sociologia norte-americana, e, por extensão, na sociologia latino-americana,
o conceito de classe social se identifica com o de estratificação social,
chegando-se a uma completa fusão de fenômenos". Ou seja, o termo é
resignificado para designar agrupamentos criados a partir de determinados
critérios.
Estas categorias, embora
muitas vezes tratadas genericamente como classes, são apenas categorias
estatísticas (isto é, uma série de pessoas que têm em comum um número
determinado de características mensuráveis, ou seja, um status comum), ou de
agrupamentos de pessoas caracterizadas por uma conduta semelhante, ou por atitudes
e opiniões comuns, ou por certo grau de interação e associação mútuas. Em quase
toda literatura sociológica contemporânea, o conceito de classes sociais tem esta
significação: agrupamentos discretos, hierarquizados num sistema de estratificação
(STAVENHAGEN, 1981, p.140).
As desigualdades sociais,
percebidas a partir de hierarquias formadas pelos procedimentos de
estratificação, tendem a ser analisadas pelos seus utilizadores como "globalmente
funcionais" para a sobrevivência da sociedade, radicando em “capacidades individuais
distintas" (ALMEIDA, 1984, p.188). Esta perspectiva apaga os traços da formação
histórica das classes, naturalizando as desigualdades.Assim, em geral, os
pesquisadores que se baseiam na estratificação social, a combinam com o tema da
mobilidade social, avaliando os movimentos dos indivíduos nas estruturas
sociais hierárquicas. A justificativa é que conhecendo as causas imediatas da hierarquia
social seria possível incentivar os indivíduos da parte baixa da escala a
empreender uma escalada rumo ao topo, a partir do acúmulo de méritos
individuais (DAVIS e MOORE,1945). Esta suposta mobilidade social na sociedade
contemporânea seria a causa do desaparecimento dos antagonismos de classe,
invalidando a abordagem marxista.
As estratificações
representam, na maioria das vezes, o que poderíamos chamar fixações sociais,
frequentemente também jurídicas, e, em todos os casos, mentais, de certas
relações de classe. Nessas fixações sociais intervêm outros fatores secundários
e acessórios (por exemplo, religiosos, étnicos) que reforçam a estratificação e que têm, ao mesmo tempo, a
função sociológica de "libertá-la" de ligações com a base econômica;
em outras palavras, têm a função de mantê-la em vigor ainda que mude sua base
econômica. Consequentemente, as estratificações podem ser consideradas também
como justificações ou racionalizações do sistema econômico existente, ou seja,
como ideologias. (STAVENHAGEN, 1962, p. 166)
Essa formulação, produzida
no início dos anos 1960, antecipou o que ainda se observa na maioria dos
estudos sobre classes sociais. O atual afastamento da teoria marxista de
classes e a ênfase nas teorias de estratificação resulta de dois processos
interligados: (1) a ascensão das teorias pós-modernas e da chamada virada
cultural, ocorrida nos anos 1980,
a partir da qual estudos sobre o indivíduo e sua
identidade ganharam proeminência frente a conceitos
coletivos, como o de classe
social (STRANGLEMAN, 2008); (2) a transição para o modelo de acumulação
flexível, "apoiado na flexibilidade dos processos de trabalho, dos
mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo" (HARVEY, 1992,
p.140). Em decorrência, a atomização social é bem vista e incentivada, fundida
como o conceito de alteridade, ou seja, existem múltiplas realidades
individuais e ninguém está autorizado a falar por outrem, sendo o outro uma
figura inacessível. Assim, nessa perspectiva pluralista e fragmentada, o
conceito marxista de classe social, coletivo por essência, torna-se
epistemológica, ontológica e, até mesmo, axiologicamente, inviabilizado.
A partir destas indicações,
fica mais fácil entender porque o conceito marxista de classe social vai
ficando nas sombras. O pós-modernismo levou a efemeridade ao extremo:
O pós-modernismo quer que
aceitemos as reificações e partições, celebrando a atividade de mascaramento e
de simulação, todos os fetichismos de localidade, de lugar ou de grupo social,
enquanto nega o tipo de metateoria capaz de apreender os processos
político-econômicos (fluxos de dinheiro, divisões internacionais do trabalho,
mercados financeiros etc.), que estão se tornando cada vez mais universalizantes
em sua profundidade, intensidade, alcance e poder sobre a vida cotidiana
(HARVEY, 1992, p.112).
É possível, portanto,
inferir que a preferência contemporânea pela caracterização de estratos sociais como
agrupamentos mensuráveis e definidos por variáveis foi reforçada por esta
perspectiva e pelos estudos culturalistas, resultando, durante as décadas de
1980 e 1990, em estudos que utilizaram metodologias classificatórias, com um
"foco esotérico na estrutura
de classes, mobilidade
social e na elaboração de modelos estatisticamente precisos baseados em
conjuntos de dados muito grandes" (STRANGLEMAN, 2008, p. 16).
Atualmente, o estudo das
classes sociais mantém-se neste domínio. A passagem a seguir, retirada de um
recente livro bastante referido sobre a classe média brasileira, exemplifica
essa predominância. Conforme Souza e Lamounier (2010, p.14), "o mais comum
é a superposição de camadas ou estratos identificáveis apenas em termos
estatísticos, sendo a classe no sentido marxista não só um fato raro, mas de
fato um caso-limite".
Esta lógica é
costumeiramente encontrada nos estudos dedicados à classe média, principalmente
naqueles que tem como foco a mobilidade social, o tema preferido das pesquisas
contemporâneas. Nesse contexto, as classes sociais foram deixadas de lado e a estratificação
tornou-se uma regra, como será demonstrado no decorrer do texto. Antes, contudo,
é necessário compreender o sentido histórico do conceito de classe média, para acompanhar
sua transformação.
Sobre os conceitos de
classe média e nova classe média
Tradicionalmente, os
estudos sobre classe média utilizam uma subdivisão de classe entre a classe
média tradicional e a nova classe média. Enquanto a primeira é composta por "camponeses,
artesãos e pequenos comerciantes"; a segunda refere-se aos trabalhadores assalariados
não vinculados diretamente ao processo produtivo (SAES, 1984, p.3). Ou seja, a classe
média é conceituada nos termos de uma classe antiga, a pequena burguesia, historicamente
vinculada à consolidação do capitalismo; enquanto a nova classe média é um fenômeno
moderno, associada ao gerencialismo e à ascensão das grandes corporações.
A nova classe média é
discutida desde a publicação do trabalho seminal de Wright Mills (1951) sobre
os funcionários de colarinho branco (white collars). Nesse livro, Mills (1951)
identifica, na transformação do capitalismo, o crescimento das grandes
organizações burocráticas, do setor de serviços, da máquina do Estado, em um
processo evolutivo de modernização. O autor observa o aumento significativo dos
cargos intermediários em grandes hierarquias, assim como o ingresso, nelas, de
profissionais antes autônomos (tais como médicos, advogados e engenheiros).
Esses fenômenos eram, então, novidades históricas, como a passagem abaixo
evidencia.
O homem de colarinho branco
do século vinte nunca foi independente como o fazendeiro costumava ser, nem tão
esperançoso de uma grande chance como o antigo homem de negócios. Ele é sempre
o homem de alguém, da corporação, do governo, do exército, e ele é visto como o
homem que não cresce. O declínio do empreendedor livre e o crescimento do
empregado dependente no cenário americano ocorreram em paralelo com o declínio
do indivíduo independente e o crescimento do pequeno homem no imaginário de seu
povo. Em um mundo povoado por forças grandes e feias, o homem do colarinho
branco é prontamente identificado como possuidor de todas as supostas virtudes
da pequena criatura. Ele pode estar na parte de baixo do mundo social, mas ele
é, ao mesmo tempo, grato por ser de classe média
(MILLS, 1951, p.xii).
É perceptível no trecho
acima a influência de Max Weber (1996). No texto, a gaiola de ferro da
burocracia pesa sobre os ombros do homem comum. A força das imagens narrativas presentes
no texto de Mills (1951), representando a sociedade americana como "uma
grande loja", "um enorme arquivo", "um cérebro
incorporado", "um novo universo do gerencialismo e da
manipulação" lembra as metáforas utilizadas por Weber (1996), ao analisar
uma realidade que se transformava diante de seus olhos.
Alguns aspectos importantes
da obra de Mills (1951) devem ser ressaltados. Primeiro, a distinção entre a
velha e a nova classe média corresponde à diferença entre os pequenos capitalistas
que vivem de sua propriedade, e os não proprietários assalariados empregados na
"máquina social". Para distingui-los dos operários, Mills (1951,
p.65) utiliza a natureza do trabalho, caracterizando o profissional da nova
classe média como aquele "cujas habilidades
envolvem cuidar de papéis, dinheiro e pessoas". Assim, "uma coisa que
eles não fazem é viver de fazer as coisas [produtos]; ao invés disso, eles
vivem da máquina social que organiza e coordena as pessoas que fazem as
coisas".
A nova classe média recebe,
desde a década de 2000, muita atenção por parte da mídia e dos pesquisadores.
Essa nova onda de estudos abandona definitivamente o conceito marxista de
classe social, ficando metodologicamente restrita a uma análise funcional de
classes como estratos de renda com certo poder de consumo e capacidade de
mobilidade social. Sendo assim, em um momento de instabilidade do capitalismo
nos países centrais, cresce a expectativa de que a "classe média global
[...] faça do mundo um lugar melhor e mais lucrativo" (WHEARY, 2009,
p.75).
Além disto, devido ao foco
na mobilidade social, classe média e nova classe média são termos utilizados
como sinônimos, engenhosamente misturados no moinho conceitual da teoria da
estratificação. Nesse contexto, o uso da palavra "nova" serve apenas
como referência temporal, designando pessoas que ascenderam recentemente na
estrutura social. Ou, mais precisamente, pessoas antes consideradas pobres,
agora incluídas no mercado como consumidoras.
Ideólogos e órgãos
internacionais mensuram e caracterizam com grande interesse a nova classe
média. Em termos desenvolvimentistas, a nova classe média ganha ares messiânicos,
como atesta o trecho abaixo, extraído de um documento do Banco Mundial (BM) de
um Grupo de Pesquisa sobre o Desenvolvimento.
Uma maior parte do
rendimento para a Classe Média, e uma baixa polarização étnica estão empiricamente
associados com uma maior renda, maior crescimento, mais educação, melhor saúde,
melhor infraestrutura, melhores políticas econômicas, menor instabilidade
política, menos guerras civis (colocando as minorias étnicas em risco), maior
"modernização" social, e mais democracia (EASTERLY, 2000, p.1)
Esse interesse tem relação
direta com a situação brasileira e de outros países ditos emergentes. O
crescimento da classe média nesses países representa um acréscimo significativo
de consumidores potenciais para as empresas globais. Esse processo parece ter
se acelerado e aprofundado por ocasião da instabilidade econômica dos
tradicionais centros do sistema capitalista, a Europa Ocidental e os Estados
Unidos. Por sua vez, a necessidade de reprodução contínua do capital o leva em
busca de novos mercados, novas fronteiras para a expansão do consumo e
crescimento da demanda. Aí que entra o papel da nova classe média global,
"um motor para a economia global; um criador de empregos; um novo mercado consumidor"
(WHEARY, 2009, p.75).
O movimento atual,
apresentado como de ascensão o papel da nova classe média global tem levado
seus mais exaltados defensores a afirmar que a estrutura social tende a ser formada
somente pelas classes médias e altas, com o proletariado sendo absorvido na
classe média (KHARAS, 2010). Todavia, autores marxistas, como Löwy (2008,
p.117), defendem exatamente o inverso, a proletarização ou semiproletarização
das classes médias, criticando a distinção entre trabalho intelectual e
trabalho manual como diferenciadora do proletariado e da classe média. Isso
porque, "cada vez mais o intelectual [entendido como categoria social] vende
sua força de trabalho por um salário, ele trabalha em uma instituição, em uma
empresa, privada ou pública, que determina o horário, o conteúdo do seu
trabalho. Vai-se formando, então, uma massa de enorme de trabalhadores
intelectuais proletarizados".
Retornando ao otimismo
demonstrado por Easterly (2000) sobre o papel da classe média no
desenvolvimento econômico, é interessante retomar uma discussão de décadas passadas.
Como indica Graciarena (1971), o que orientou historicamente as discussões
sobre o papel da classe média na América Latina era saber se ela assumiria ou
não o mesmo protagonismo que teve no desenvolvimento econômico dos EUA e da
Europa, já que a tese do desenvolvimento do capitalismo a partir da ascensão da
classe média,se baseia na idéia de que as classes médias possuem uma vocação
irrevogável para o capitalismo e a democracia liberal, e é por isso que se
supõe que, ali onde as classes médias são numérica e funcionalmente
importantes, as possibilidades do capitalismo e da democracia liberal são
maiores. Então, o que indiretamente estivemos estudando, foi primordialmente a
viabilidade do capitalismo e da democracia liberal(GRACIARENA, 1971, p.134).
Dessa maneira, as classes
médias "chegaram a representar o papel de indicadores do capitalismo"
(GRACIARENA, 1971, p.135), como parece ocorrer, na atualidade.
O processo de transformação
do conceito de classe média tem ainda outro significado. Na transição das
discussões teóricas sobre a teoria das classes sociais para as teorias de estratificação
e agrupamento por conjunto de variáveis, o problema da orientação política das classes
médias foi colocado de lado. Diferente das preocupações dos teóricos
latinoamericanos da primeira metade do século XX, em dúvida sobre o futuro do
capitalismo na região (GRACIARENA, 1971), os pesquisadores contemporâneos tem
diante de si um cenário de ampla consolidação do capitalismo em escala global.
Neste cenário não há razão
para problematizar o tema da classe média, tudo já está resolvido:
Com as necessidades básicas
atendidas, a classe média está livre para se focar em alvos maiores - de
diversões triviais a novas aquisições, de negócios ao engajamento político. O
resultado é um efeito dominó que é sentido ao redor do mundo. Pense na classe
emergente como um grupo autoperpetuado. Quanto mais recursos seus membros tem,
mais produtos e serviços eles compram. A demanda por estes produtos e serviços
cria novos postos de trabalho e oportunidades de negócios que permitem outras
pessoas a ingressarem na classe média. E assim continua o ciclo (WHEARY, 2000,
p.76).
A nova classe média e ampliação
do consumo no Brasil
Enquanto o aumento do
consumo é retratado como a grande notícia da ascensão da nova classe média,
estudos recentes sobre a classe média no Brasil, como os de Grun (2008) e Souza
(2010), evidenciam um aumento da exploração e a deterioração das condições de trabalho.
As adaptações contemporâneas do capitalismo, com processos de terceirização, cooperativismo,
associativismo, novas formas de empreendedorismo e sistemas de franquias, posicionam
a nova classe média no protagonismo de formas reinventadas de acumulação capitalista.
Como parte deste processo, a flexibilização do trabalho encontra nas pequenas e
microempresas uma maneira de reduzir os custos com a contratação de mão de obra
e direitos trabalhistas. Por meio de terceirizações e contratações por projeto,
é mantido o funcionamento da grande empresa em suas atividades essenciais com
um quadro de trabalhadores muito mais enxuto.
Essas transformações no
mundo do trabalho, por um lado, aumentam o contingente de pessoas com uma renda
mínima para o consumo; por outro, mantém uma massa vivendo em condições de alta
vulnerabilidade e proletarização ou semiproletarização. Neste contexto, na mesma
proporção em que aumenta o consumo das famílias de não-consumidores, nos termos
propostos por Vieira Pinto (2008), aumentam também os riscos de que ocorram
crises sistemáticas, geradas por bolhas financeiras, nas quais quem paga a
conta mais alta são as pessoas endividadas e desassistidas. Da mesma forma,
enquanto aumenta o conforto de seu lar, a família da nova classe média trabalha
cada vez mais para pagar suas contas, ou seja, desgasta-se para gastar.
Antes de prosseguir nesta
discussão é preciso retomar o tema da classe média, focando agora
especificamente em estudos realizados no Brasil no passado recente.
Os estudos produzidos nas
décadas de 1960 e 1970 tinham como pano de fundo a discussão sobre o papel
político da classe média, ou seja, analisavam de que lado da fissura a classe
média iria se postar: ao lado do proletariado ou ao lado da burguesia (ALBUQUERQUE,
1977; ARAÚJO, 1977; EVERS, 1973). Metodologicamente, a divisão entre classe
média e classe proletária continuava sendo operacionalizada, seguindo Mills (1951),
com base na natureza da ocupação: intelectual ou manual. Após essa primeira
fase de pesquisas, diretamente vinculada ao transplante de modelos teóricos,
verifica-se uma lacuna de estudos sobre este tema durante as décadas de 1980 e
1990, apesar da exceção representada por Quadros (1985 e 1991) que, todavia,
reproduzia o modelo teórico usado anteriormente.
Na história do país,
concomitantemente com a ocorrência da virada culturalista já mencionada, estas
duas décadas foram marcadas pelo aprofundamento da crise econômica.
Assim, o tema da classe
média ficou em segundo plano até a estabilização monetária e a chegada de Lula
à Presidência.
Nos anos 2000 renasceu o
interesse, agora com ênfase na nova classe média. Essa retomada é marcada por
uma transformação metodológica. Saem de cena as controvertidas discussões sobre
a ocupação e a natureza do trabalho como variáveis definidoras e entram os conceitos
de renda e poder de compra. Por hipótese, essa mudança de orientação parece acompanhar
pelo menos duas tendências: a influência das metodologias utilizadas pelas instituições
internacionais, como o Banco Mundial (BM) e a Organização das Nações Unidas (ONU);
e a complexidade crescente para dividir claramente o que é trabalho manual do intelectual.
Com relação aos
receituários do BM e da ONU para os "países em desenvolvimento", observa-se
um foco crescente no combate à desigualdade via inclusão dos pobres no mercado consumidor,
principalmente inspirados nas teorias de Amartya Sen (2003). Essa tendência se aprofundou
a partir de 1990, com a criação do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), uma
combinação entre longevidade, educação e poder de compra. A inovação do IDH em termos
de indicador de renda foi a criação do Paridade de Poder de Compra (PPC), um
índice que elimina a diferença entre os custos de vida dos países. Como indica
o próprio sítio da ONU, o IDH é utilizado pelo governo brasileiro na formulação
das políticas públicas.
Considerando a influência e
a imbricação destas instituições nas universidades, assim como sua reverberação
na mídia de massa, pode-se compreender porque suas metodologias e diretrizes
direcionam os esforços da pesquisa acadêmica. Um bom exemplo é o
trabalho do Centro de Políticas Sociais (CPS) da FGV que, além de utilizar e se
propor a melhorar as metodologias do Banco Mundial, realizou diversos
seminários com a participação dos membros desta organização, como o Seminário
sobre Classe Média e Mobilidade Econômica na América Latina, realizado em maio
de 2011.
Em paralelo a esse
movimento, outro fenômeno que parece ter incentivado os
pesquisadores a abandonar
as discussões teóricas sobre a nova classe média a partir da natureza do
trabalho é sua flexibilização. As transformações já mencionadas erodiram a
quase imperceptível linha divisória entre trabalho intelectual e manual. Além
disso, ao retirar da agenda as discussões sobre a natureza do trabalho, os
estudiosos da estratificação e mobilidade social suprimem, definitivamente,
qualquer consideração sobre a natureza contraditória destas relações, como se
encontra na abordagem marxista. Para Saes (1984, p.2), tratar a questão da
classe média como uma estratificação social é filtrar os efeitos das relações sociais
de produção, impedindo que "estas se manifestem diretamente e sem
intermediações no plano ideológico e político".
Também no Brasil o discurso
que associa a nova classe média com o aumento do mercado consumidor e o
fortalecimento do mercado interno substituiu as antigas preocupações com sua
orientação política. No entanto, a legitimação dos dirigentes públicos lembra
as indicações segundo as quais a tendência é que, salvo raras exceções, as
classes emergentes apoiem o modelo econômico que as favorece (GRACIARENA,
1971). Em outras palavras, o consumo pelo não-consumidor tende a produzir apoio
político. Por exemplo, para O'Dougherty (2002), o ex-presidente Fernando Collor
de Mello foi deposto pelo clamor popular da classe média, em grande parte, por
causa do confisco da poupança que retirou o poder de compra da população e, consequentemente,
minou sua base de apoio. Analogamente, é possível inferir que um governo que
aumenta o poder de compra da população deve receber
amplo apoio. Esta
constatação não deve ser entendida como uma tentativa de deslegitimar o apoio
ao governo que melhorou suas condições de vida, como lembrou Souza (2011), mas
sim como auxílio para a compreensão do cenário atual.
A nova classe média
brasileira e a dialética do consumo
Pelas características de
grande parte da população brasileira, com uma demanda de bens básicos
reprimida, não chega a surpreender a onda de otimismo em que nos encontramos imersos.
Pesquisas sobre a nova classe média, realizados pelos CPS a partir de 2006, têm
pesquisado o Índice de Felicidade Futura (IFF), no qual, informa a última
pesquisa, o Brasil é tetracampeão mundial (NERI, 2012).
Para compreender o
significado por trás destes dados cabe lembrar que a associação entre consumo e
realização humana tem longa tradição nos estudos de comportamento do consumidor.
Desde que a virada culturalista chegou neste campo, mais precisamente a partir do
texto de Firat e Venkatesh (1995), os estudos da cultura de consumo, que
trabalham com as dimensões simbólicas e o potencial emancipador do consumo na
formação de identidades,
sedimentam uma das
vertentes mais influentes da área em termos de prestígio e publicação.
Esta linha de pesquisa,
apesar de se dizer reflexiva, não questiona em momento algum a supremacia do
mercado como espaço para a realização humana e, assim, acaba por incentivar esta
associação fetichista. No limite, para estes pesquisadores, comprar e ser se
confundem.
Assim, consequentemente, só
pode ser feliz e realizado quem compra, pois, se comprar define a identidade,
alguém que não compra não é de fato uma pessoa completa. Este mesmo raciocínio
parece estar implícito (ou talvez explícito?) nos índices como o IDH e o IFF.
Explicações mais
abrangentes para a associação entre consumo e realização pessoal podem ser
encontradas nas formulações sobre a ideologia do consumismo, definida por
Sklair (2010, p.136), como “um conjunto de crenças e valores do sistema
capitalista globalizado articulado para fazer as pessoas acreditarem que a
dignidade humana e a felicidade são alcançadas nos termos do consumo e das
posses”.
A ideologia do consumismo,
disseminada pela cultura global de consumo, parece estar diretamente ligada na
base constitutiva do fenômeno mundial da nova classe média. Na lógica da
mercadoria, as fronteiras entre as nações fazem cada vez menos diferença. Os
produtos fabricados e vendidos em escala global são os mesmos. A nova classe
média global, seja ela de origem chinesa, indiana, ou brasileira, compra e
deseja os mesmos aparelhos eletrônicos, as mesmas marcas de cerveja, os mesmos
automóveis.
Ao mesmo tempo em que
diversas famílias de não-consumidores entram no mercado, o discurso otimista
que associa a redução das desigualdades e a erradicação da pobreza com o aumento
do consumo suprime da agenda a discussão de problemas sociais e estruturais historicamente
presentes na realidade brasileira.
De fato, para O'Dougherty
(2002, p.11), a situação é grave, uma vez que o projeto da classe média no
Brasil voltado para "obter distinção social e modernidade global através
do consumo, engaja as pessoas de classe média na reprodução local das
desigualdades. Por sua vez, o engajamento transnacional reforça, ao invés de
reduzir, a hierarquia entre nações".
Enquanto pesquisas e dados
oficiais demonstram números favoráveis, um olhar mais atento revela outra
fotografia. Sobre a questão da redução das desigualdades, é preciso observar
que as bases comparativas de um país que nunca trabalhou sistematicamente com políticas
e mecanismos de redução da pobreza são extremamente baixas. Assim, um programa como
o Programa Bolsa Família, combinado com o aumento do salário mínimo, causa um enorme
impacto estatístico.
Em um cenário de
persistentes desigualdades, a ampliação do consumo da nova classe média se faz
majoritariamente via crédito. Assim, o consumar produtivo e positivo se amplia,
tendo como representação a ideia abstrata de fortalecimento do mercado interno.
Já o consumir negativo destrói a mercadoria, criando uma sensação de regozijo
definida pela posse e uso de um bem de valor socialmente construído e
reconhecido. Esta sensação é reforçada pelo caráter global da cultura de
consumo, que potencializa o valor dos bens universalmente afirmados como
"necessários", como no ícone representado pelo automóvel novo (SOUZA
e LAMOUNIER, 2011).
O carro novo, icônico para
a nova classe média, é possuído por 13% de seus integrantes, não sendo nenhuma
novidade para as classes A e B, nas quais o número chega a 92%. Para os
não-consumidores, como indica Vieira Pinto (1975, p. 322), "o consumo é um
ato excepcional que se reveste de um estado psicológico de esperança”. A
disparidade de emoções face ao consumo, já que para os consumidores este é um
gesto banal e cotidiano, expressa " a dicotomia entre as classes
antagônicas na sociedade fracionada" que as
estratificações sociais
buscam ocultar.
Ainda, conforme demonstram
Souza e Lamounier (2011, p. 38), "televisão em cores (100%), geladeira
(100%), rádio (98%), DVD (98%), máquina de lavar roupas (90%), freezer (75%),
aspirador de pós (54%) compõem a pauta de bens indispensáveis em uma residência
de classe média". Este consumo tem um preço a ser pago, visto que grande
parte é financiado via crédito, antecipação de trabalho e geração de energia
inercial na forma de juros.
Nos últimos 6 anos o
endividamento das famílias brasileiras dobrou de tamanho. Isto quer dizer que
42% da renda anual das famílias está comprometida com dívidas com bancos e financeiras,
sendo o cartão de crédito e o cheque especial responsáveis por 80% deste montante
(COSTA, 2012). Este mecanismo de antecipação do prazer consumado pelo consumir
a mercadoria tem como resultado inequívoco a necessidade de mais trabalho para obter
mais dinheiro (VILLAVERDE, 2011). Neste processo, as pessoas se consomem para acertar
as contas por uma mercadoria, que muitas vezes, já foi destruída, tendo
finalizado sua vida útil.
Considerações finais
É exatamente quando os
teóricos, ideólogos e pesquisadores parecerem ter esquecido a origem da teoria
das classes sociais e sua importância para se compreender a sociedade capitalista,
que o tema deve ser trazido à tona. A teoria da estratificação e sua associação
de estratos e classes com indicadores de consumo tende a mostrar somente o lado
brilhante da lua. Essa visão subsidia a impressão geral de que enquanto as
pessoas estiverem consumindo
mais, há um processo
análogo de desenvolvimento nacional em andamento.
Nas palavras de Viera Pinto
(2008, p. 184-5), [a] rejeição da noção de “classe” e de seu papel na história
resume, portanto, a lição suprema da sociologia alienada. Com isso, fica
automaticamente trancado o rumo da desalienação do pensamento do povo
subdesenvolvido que pretende empreender o projeto de libertação. Terá de
fundá-lo na restituição às classes sociais antagônicas de seu exato papel,
estudá-lo nas atividades, relações externas e internas que ligam os indivíduos
em cada uma e separam os dois blocos na oposição inconciliável que
os coloca como adversários.
A importância do restabelecimento do conceito de “classe” no centro do
pensamento político consiste em que só então ganhará contornos verídicos a
imagem do processo social efetuado mediante contrastes e saltos. Do contrário,
a desarmonia real poderá ser reconhecida até mesmo pelos poderosos e
dominadores, mas não receberá a significação que lhe é imanente.
Sustentar a aparência
miraculosa e fetichista do crescimento econômico e da
distribuição de renda
encobre que, [n]a palavra "consumo", contém-se a chave para a
percepção das diferenças na psicologia das classes inimigas. Para o pobre, o
consumo é uma ambição - ambiciona comprar uma habitação, um bem de conforto -,
para o rico é um direito.
O primeiro só o pratica
limitada e penosamente no momento de ascensão do "balanço", que logo
retorna¸ por força do movimento pendular, à fase descendente, aquela em que o
comprador se vê esmagado pelas dificuldades de pagamentos de prestações
escorchantes, quando já passou a ilusória euforia do momento de aquisição. Para
o rico, o "balanço" tem outra significação. Por sinal, e por estranho
que pareça, é um balanço que não balança, porque, sendo o "balanço"
que sua contabilidade registra, nele não há oscilações pendulares, mas apenas
constante ascensão, unicamente, no pior dos casos, marcada por diferenças de
aceleração (VIEIRA PINTO, 2008, p. 324).
O endividamento crescente
das famílias brasileiras é um indicador objetivo destes riscos. Pesquisa
realizada em junho de 2011 aponta um nível recorde de endividamento no país,
com o total das dívidas chegando a 40% dos rendimentos do trabalho e dos
benefícios pago pelas previdências sociais. “Se, do dia para noite, os bancos e
as financeiras decidissem cobrar a dívida total das pessoas físicas, isto é,
juros e o empréstimo principal, que chegou a R$ 653 bilhões em abril, cada
brasileiro teria de entregar o equivalente a 4,8 meses de rendimento para zerar
as pendências” (ESTADÃO, 2011). No Rio Grande do Sul, por exemplo, 42% dos
endividados, que correspondem a 78% da população, estão com as contas atrasadas,
sendo que destes 15% não tem condições de pagar o que devem.
Informações como estas
indicam a necessidade de se aprofundar as reflexões sobre o tema aqui tratado,
considerando que neste ensaio foram apresentadas apenas elaborações iniciais.
Cabe, neste momento, ressaltar algumas indicações para futuros
desenvolvimentos:
(a)
Retomar o tema das
classes sociais poderá elucidar a relação hoje opacificada entre a entrada de
não-consumidores no mercado e a persistência das desigualdades sociais;
(b)
Aprofundar a indicação
apenas esboçada entre aumento de consumo por não-consumidores e o desgaste do
ser pelo trabalho no cenário de acumulação flexível em que nos encontramos;
(c)
Estudar mais
detidamente as implicações relativas ao endividamento e, portanto, ao consumo que
só se realiza consumindo antecipadamente a renda do trabalho;
(d)
Discutir o que está sendo
chamado de desenvolvimento em associação com o aumento do consumo, problematizando
sua expressão no que se refere a propiciar modos de ser autônomos e igualitários
em termos culturais, sociais e econômicos.
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